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Lapidar, dilapidar: algumas palavras sobre a poesia de Luciana Martins (3ª parte)

 



Impropérios 

O quarto livro de Luciana Martins, Impropérios, realiza uma grande guinada em relação aos livros anteriores. Nestes, como se viu, mesmo diferentes entre si, a temática girava toda ela em torno de experiências mais imediatas do sujeito: relações amorosas, impasses existenciais, dores emocionais e físicas, memórias de infância e juventude, tudo em meio a conversas com a literatura, o teatro, o cinema. Impropérios, por sua vez, se volta para o crítico momento vivido no Brasil nos últimos anos nos âmbitos social e político. Os poemas se encontram em sua maioria datados e chama a atenção a grande quantidade de textos escritos/reescritos ao longo do ano de 2019. A reação indignada e vigorosa ao primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, e tudo o que ele representa, catalisou as energias criativas da autora. Poemas concebidos anos antes (em visível menor quantidade) acabaram se integrando àqueles escritos com o claro intuito de marcar posição. 

“Impropério”, num sentido primeiro, é “ofensa”, “ultraje”, “insulto” lançado contra alguém. Em outra acepção, é “censura injuriosa”, “repreensão”. O Dicionário Houaiss indica ainda um significado específico para a palavra quando no plural, “impropérios”: “no ofício da Sexta-Feira Santa, queixas dirigidas à humanidade, representada pelos judeus bíblicos, postas nos lábios de Jesus.” 

Se os poemas são “impropérios”, seriam assim a partir de visão conservadora do que seja o poético, que reservaria ainda a ele, e dele esperaria, algum tipo de elevação, profundidade, distinção. Seriam ofensivos ou ultrajantes para quem pretendesse da poesia e da linguagem que a conforma exclusivamente experiência espiritualizante e enobrecedora, deslocada do bruto da vida. Ou para quem simpatizasse com as realidades por eles postas em causa (o que é difícil de imaginar entre leitores de poesia). Na verdade, estes poemas de Luciana Martins, menos do que “impropérios”, podem ser vistos como reações a “impropérios”, vindos de diferentes instâncias, que incidem sobre a sensibilidade da autora, que a eles reage. 

Seja qual for o sentido que se queira sublinhar, e a que o termo se aplica (se aos textos do livro ou aos discursos que eles procuram confrontar), os poemas se manifestam de forma violenta, rebatendo violência de partida. Luciana Martins batizou seu primeiro livro com a locução “lapidação da aurora”, expressão que dava nome também a um poema, como se viu. Burilar o dia que nasce, cheio de vida e esperança, acolher o momento renovador, era o intuito da escritora naqueles texto e contexto. A propósito, tratava-se do último poema do livro, portanto programático em relação ao devir. Em Impropérios, o que se vai ter, em contrapartida (para jogar com a expressão), é outra “lapidação”, agora “apedrejamento” (sentido que o termo também pode ter), ou “dilapidação”, mas não da “aurora”, e sim do “ocaso” (igualmente em sentido simbólico): é à demolição, à destruição de um presente nefasto, e aos atos e discursos que o sustentam, vividos como momento crepuscular, que o livro vai se dedicar. Trata-se de um vigoroso golpe (a saber se efetivo) contra o Patriarcado de Pindorama (evoé, Oswald de Andrade!). 

Impropérios traz em sua abertura epígrafe da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol: “A minha escrita nasce quase sempre de uma revolta”. Divide-se em três partes, individualmente coesas, interligadas entre si: “I. Vadia na Putaria”, “II. A Arte da Guerra” e “III. Roman à Clef”. O número de poemas varia de parte para parte, sendo a mais extensa a terceira. Cada uma delas, por sua vez, traz epígrafe própria, sempre de alguma escritora: Ana Cristina César, Clarice Lispector, Bruna Mitrano. 

O livro, com suas duzentas e poucas páginas, é significativamente mais extenso que os anteriores. Além dos textos, traz capa e ilustrações da filha Amanda Guerrero, que havia colaborado em Lyrica 75mg, como se viu. Na capa, de coloração variada, vemos desenho representando a escritora, sentada no chão, com lápis ou caneta na mão, cercada por uma série de rostos. De sua boca sai uma espécie de nuvem, não de fumaça, eventualmente de “impropérios”, palavra grafada justamente dentro da nuvem, abaixo da qual lemos o nome da autora. Na contracapa, aparecem três figuras femininas, entre elas uma transexual, que projetam diante de si três máscaras (um demônio, uma onça pintada e um feiticeiro africano). Tais figuras, explicitamente nuas e executando coreografia ritual, saem de dentro de uma fogueira e confrontam duas outras: um guerreiro medieval, com armadura, lança e coroa dourada, caído no chão; e um monge, ou sábio, ou velho venerando, com seu cajado, manto e capuz, e que procura se defender com as mãos. São dois arquétipos do masculino. 

Como se disse, a grande maioria dos poemas (alguns bastante longos, em meio a outros concisos, de caráter epigramático) vem datada, muitos ainda com notas que informam circunstância e/ou local de redação. As datas apontam não só o momento original de criação, mas também as tantas vezes em que cada texto foi revisto pela autora. Por exemplo, o primeiro poema, “mulher fenomenal”, traz a seguinte nota ao seu final: “pensando em maya angelou no ônibus em 03.11.2015 / retocado em 29.05.16, em 03.01.2017, em 07.02.2017, em 30.05.2017 / em 30.06.2018, em 17.07.2018 / em 24.05.2019, em 06.06.2019, em 21.06.2019, em 30.11.2019 / em 1º.12.2019 concluído em – ? – ? ...?”. Além de revelar a obsessão com a reescrita ao longo do tempo, as notas explicitam a inscrição dos poemas dentro de um dado tempo. Os textos se querem crônica do vivido, menos de vivência pessoal, mais de vivência coletiva, ou de um pessoal cada vez mais atravessado pelo coletivo e que a ele se reporta para entender a si mesmo. 

Na primeira parte, “Vadia na Putaria”, e de forma provocativa, foca-se a situação da mulher na sociedade brasileira, em diversas circunstâncias, especialmente como vítima de violência. 

O primeiro, “mulher fenomenal”, há pouco referido, é explícito já desde a abertura: “sorria / você está sendo / estuprada // sorria / você está sendo / assassinada // pelo teu ex / pelo teu marido pastor / pelos amiguinhos boyzinhos do teu irmão / pelos filhinhos de papai / pelos cidadãos de bem de nosso país”. Parodiando aquele aviso que se lê nas paredes de alguns estabelecimentos comerciais (“Sorria! Você está sendo filmado”), a autora abole metáforas e não mede palavras. Na sequência de tal introito, lemos uma lista de nomes e sobrenomes de mulheres (quarenta e seis precisamente), em ordem alfabética, desde aquelas que se conhece do noticiário policial (Cláudia Lessin Rodrigues, Eliza Silva Salmúdio), a figuras midiáticas (Fernanda Maria Young, Luíza “Brunet” Botelho de Oliveira), a personagem de Machado de Assis (Maria Capitolina de Pádua Santiago – a Capitu, de Dom Casmurro), ou ainda outras menos conhecidas, cuja identificação demanda pesquisa. O poema segue elencando diversos casos de estupro, tortura e feminicídio, pontuados por versos que compõem sarcástico refrão: “enquanto isso / exercite a panturrilha / mulher maravilha”. São sete páginas de horror explícito, que todos reconhecemos, mas que causa especial incômodo num livro de poemas, como se pudéssemos talvez melhor suportá-lo quando veiculado por certos registros discursivos (reportagem, estudo sociológico, manifesto político), mas ao qual resistíssemos quando transformado em poesia. 

O poema de abertura dá o tom de todo o livro e circunscreve, de imediato, os assuntos da primeira parte. O estupro nele tematizado, tangenciando agora incesto e pedofilia, é também assunto do homônimo “estupro”, que se lê mais adiante: “o pai abusava dela / e da irmã mais nova // pra proteger a irmã ela o ‘seduzia’ quando este obrigava a menorzinha a tocar em seu membro para masturbá-lo // (...) // a tatuagem Deus é fiel / estava desde sempre naquele braço que tanto a esganava / e arrancava sua calcinha / quando a mãe saía para o trabalho // (...) // ela tinha seis anos na primeira vez” (“estupro”). 

A questão do aborto, correlata ao estupro, é tema insistente. Leia-se, por exemplo, “política pública”: “a damares alves / ministra da mulher da família e dos direitos humanos / quer salvar / quer proteger / o bebê / na barriga da mamãe / que foi estuprada”, a fim de garantir “que o estuprador / possa dar carinho / ao filhinho”. Na sequência, poema intitulado “abortivo” surpreende “a médica da família” que aceitou fazer curetagem em paciente “e achou todos os comprimidos / lá – intactos – / boiando junto / com o pequeno / feto”. Logo em seguida, “poema-estupro”, um epigrama, complementa os anteriores e dá ao tema a sua devida dimensão política: “o corpo é meu / o feto é meu // – a lei é dos homens”. Mais adiante, “semblante” reelabora experiência pessoal: “na clínica de aborto clandestino em goiânia / pela 2ª vez em menos / de 12 meses // no quarto de espera / a enfermeira me reconheceu (...)”. 

O reconhecimento de vozes femininas precursoras, na militância política e na literatura (as epígrafes do livro e de cada uma das três partes já são indício disso) vem assinalado em poema específico:

  

women’s liberation

 

as corajosas

ana cristina (com “coceira no hímen”)

e sylvia plath (guardando meleca embaixo da carteira)

vieram

– com as betty friedan do feminismo do fim da década de 60

– queimar

                   versos

em praça pública

para que agora pudéssemos fazer poesia

         de peito aberto

         (mas com sutiã para quem quiser é claro)

 

                                               around 2013/concluído em 2.08.2019

 

 Se vozes e figuras femininas são motivo de deferência, frases ou versos de conhecidos autores homens são ponto de partida para paródias irreverentes, à maneira de poemas-piada, alguns adentrando o âmbito da sexualidade, sem papas na língua. À celebre formulação de Lobato, “um país se faz com homens e livros”, a poeta responde: “os homens a gente come / os livros a gente lê” (poema “monteiro lobato revisitado por uma mulher moderna”). Versos de Vinicius de Moraes, do poema “Enjoadinho” (“Filhos... Filhos? / Melhor não tê-los!”), surgem relidos: “homens / ‘melhor não tê-los / mas se não os temos’ / como fudê-los?” (“vinícius-fêmea”). Assim como Cabral, em conhecido poema seu, poema que fecha o primeiro segmento do livro: “‘Um galo sozinho não tece uma manhã:’ / – ele precisará sempre de uma galinha” (“feminismo poético cabralino”). São versos escrachados e ligeiros, de humor que pode não fazer rir, e que servem de contraponto ao clima pesado de outros poemas. 

Ainda nesta primeira parte, chamam a atenção aqueles textos em que a poeta procura se definir, ou então caracterizar os recentes caminhos de sua escrita. A expressão “ecce homo” (as célebres palavras de Pôncio Pilatos referindo-se a Cristo antes da Crucifixão, retomadas por Friedrich Nietzsche como nome de livro seu) inspira o título de dois poemas, ambos designados “ecce femina”. No primeiro, Luciana Martins explicita sua natureza: “sou uma sujeita / uma sujeitinha lírica / que não se sujeita”. Nos versos iniciais do outro, lê-se: “sou impertinente / – insubmissa mesmo – / não lambo botas / tenho prazer em descumprir ordens / emitidas / por gente incompetente // (...)”. “Poética” define as balizas entre as quais a autora se movimenta: “menestrela / que ministra / poemas sob estrelas // barda que bombardeia / os explosivos – versos”. A propósito de inusitadas flexões de palavras que costumam ocorrer no masculino (como as pouco usuais “menestrela” e “barda”), dois poemas ironizam o feminino algo serôdio do masculino “poeta”, posto que ainda em voga em alguns círculos. Trata-se de “poetisa” e “poetisa 2”, no primeiro do qual se pode ler: “põe brisa / poetísica / põe e alisa / quem te pisa // és esposa do poeta? / embaixatriz por um triz? / – esse o temor de cecília meireles // ‘serás marquesa’ / se o poeta for marquês? // (...)” (“poetisa”). 

Para fechar a abordagem de “Vadia na Putaria”, reproduzo poema escrito a partir de matéria autobiográfica, devastador em seu intuito, e que exemplifica bem a síntese entre experiência pessoal e coletiva que, como se disse, é a nota distintiva deste livro:

 

 orientação de tese heteronormativa

 

         1

 

nos tempos do doutorado na usp:

por favor eu te peço

me dê mais um prazo

tem misericórdia de mim

 

ora

desiste do doutorado

minha mulher desistiu

 

         2

 

         nossa!

lulu

foi um parto esta tese

né?

exclama o amigo

 

não foi um parto

foi um aborto

diz o orientador

 

                                               29.06.2019

 

 A segunda parte, “A Arte da Guerra”, captura violências e injustiças diversas. 

O primeiro poema, “camiseta do ciep operário ensanguentada”, opera a partir de matéria colhida no noticiário, reproduzindo falas de pessoas envolvidas. Aqui, Luciana Martins utiliza recurso que se fará cada vez mais presente no livro (cut-copy-and-paste), capturando fatos e discursos que chegam pelos jornais impressos e televisivos, pela internet, ou conversas ouvidas/vistas em casa, na rua ou nas redes sociais, apropriados e reelaborados, por vezes de forma bruta, por vezes com maior retrabalho. Confiram-se os versos iniciais do poema em questão: “mãe eu tomei um tiro // eu sei quem atirou em mim eu vi foi o blindado // ele não me viu com a roupa de escola mãe? // a culpa é desse estado doente que está matando as nossas crianças com roupa de escola / estão segurando mochila e caderno não é arma não é faca // a bala estragou tudo dentro dele / a única coisa que ficou foi a pressãozinha dele / que foi caindo até ele chegar a óbito (...)”. Ao pé da página, ampla nota (de que se reproduz aqui fragmento) contextualiza o ocorrido: “em 20 de junho de 2018, o exército brasileiro e a polícia civil do rio de janeiro fizeram uma operação no complexo da maré com 2 caveirões e 1 helicóptero que dava voos rasantes atirando contra a comunidade (...)”. 

Em outro poema, “samba do crioulo doido (???)” o recurso se repete, agora com diversos flashes, trazendo ocorrências várias, com destaque para o envolvimento da população pobre e negra: “mais de 2 mil pessoas acamparam em frente a supermercado / na samambaia em busca de uma das 180 vagas abertas no dia 26.06 / – vendo as fotos e assistindo na tv todas as reportagens locais / sobre o assunto / é possível afirmar a olho nu que / 98% são negras e negros // em copacabana / a gente (embranquecida) / tem de andar olhando pro chão / pra não topar / em pessoas caídas / combalidas / todas negras // (....) // de 3 em 3 meses eles sobem na comunidade / pra fazer isso daí: CHA / CI / NA / eles riem na cara da população // (...) // (detalhe: se apossaram dos celulares das vítimas / e enviaram emojis de caixão e caveiras / em resposta a quem perguntava se tava tudo bem) // (...) // conclusão do ipm-inquérito policial militar (em outubro): / ‘ausência de crime ou transgressão / por parte dos policiais militares envolvidos no caso’ (...)”. 

Outros assuntos candentes do noticiário adentram igualmente o livro. A catástrofe ambiental de Brumadinho, em Minas Gerais, em janeiro de 2019, é o assunto de “anti-lira itabirana”. Nele, são reproduzidos depoimentos de diversas testemunhas e sobreviventes, pontuados por fala do presidente da companhia de mineração responsável pela tragédia, em entrevista dada aos jornais, e que funciona também como refrão dentro do poema: “a vale é uma jóia brasileira”. Os métodos de investigação da Operação Lava Jato são assunto do poema “corte do pequeno inquisidor da polícia política”: “as sessões gravadas de delações da lava-jato / são as novas representantes dos / inquéritos da santa inquisição (...)”. Depoimentos vazados de Fabrício Queiroz, figura controversa ligada ao presidente da República e sua família, servem de matéria-prima para “quem indica (qi)”: “tem mais de 500 cargo lá – cara! / na câmara do senado // (...) // – porra é só chegar: / mermão / nomeia fulano / pra trabalhar contigo aí / [som de narrador de jogo de futebol gritando gooooool] (...)” Os episódios de escândalo sexual envolvendo o médium e curandeiro João Teixeira de Faria, mais conhecido como João de Deus, são assunto de “viva o ateísmo ii” (o segundo de uma série de três poemas): “o joão de deus (joão do diabo) estuprava / as mulheres numa / sala privada // eram adultas adolescentes crianças / ‘calma fique tranquila / porque seu pai vai ser curado’ / – dizia para duas irmãs / que abusou alternadamente (...)”. 

Destaco ainda um poema deste segmento, datado de momento muito anterior, ainda da juventude da escritora, que contrasta com os demais, mas que a eles se integra na medida em que vem se somar àqueles textos de autodefinição dispersos pelo livro, e que ajudam a entender o ponto de onde Luciana Martins olha o mundo:

  

esquerda festiva

 

minha primeira professora

me forçava a escrever

com a mão direita

 

não conseguiu

 

até hoje luto

contra a corrupção

que há em se ser destra

 

                                               15.05.1982

 

A terceira parte se intitula “Roman à Clef”. Tal expressão em francês, que se poderia traduzir de forma literal por “romance com chave”, designa aquelas obras narrativas que lançam mão de personagens com nomes fictícios para tratar de pessoas e acontecimentos reais. Só os leitores que possuem a “chave” seriam capazes de estabelecer a conexão entre ficcional e não-ficicional, decifrando o que estaria por detrás da narrativa (“abrindo”, assim, sentidos “fechados”). A autora utiliza tal expressão de forma irônica, pois não se trata aqui de romance, evidentemente, nem “romance com chave”, já que as situações são de amplo conhecimento de todos e as personagens (todas infelizmente reais) são quase sempre explicitamente mencionadas (e quando não são, fica sempre óbvia sua identidade). 

O poema de abertura, “ludovika wittgenstein”, é importante para entender o intuito da poeta. Partindo de formulação conhecida do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, “wovon man nicht sprechen kann / darüber muss man schweigen” (“do que não se pode falar, sobre isso se deve calar”, em tradução aproximada), a autora subverte seu sentido. Atribui tal operação, de forma zombeteira, a autoria feminina (Ludovika seria o equivalente feminino do masculino Ludwig), riscando a segunda parte da expressão, para então retificá-la no dístico final: “sobre aquilo de que não se pode falar / deve-se poetizar”. E “aquilo que não se pode falar”, por ato de censura ou auto-censura, vai ser (se “poetizado” é vocábulo que de fato cabe aqui) escancaradamente dito. 

O primeiro texto a seguir, “‘ode’ ao presidente ‘mito’-neonazi”, elenca uma série de frases polêmicas, muito divulgadas, do Presidente da República, já desde seus anos de atuação na Câmara dos Deputados em Brasília até momentos mais recentes como candidato e depois líder da nação: “olha jamais eu ia estuprar você que cê não merece / você é uma imoral tá vagabunda / chora agora chora agora vagabunda / ah vai dizer agora que você é uma coitada agora? / (...) / o brasil não pode se transformar na casa da mãe joana / o erro da ditadura militar foi torturar e não matar / (...) / eu sou favorável à tortura tu sabe disso / sou anti-democrata com muito orgulho / só vai mudar quando partirmos pra uma guerra civil aqui dentro / fazendo o trabalho que o regime militar não fez / (...)”. E por aí vai. Por vezes, a autora acrescenta formulação própria em meio à citação: “meus ídolos / dentre outros da mesma laia / são o torturador carlos alberto ustra / e o narcotraficante pedófilo estuprador alfredo stroessner / (...) / michelle minha primeira-dama vc é tão cristã / veja só como trata a vovozinha / maria aparecida que mora no sol nascente”. 

A história transformada em mito é matéria-prima de epopeias. Mas Luciana Martins não é poeta de fôlego épico, muito menos os assuntos que canta teriam altura para tanto. Quando muito, é autora de epílios (composições de assunto épico de breves dimensões), a partir de história e mito degradados, paródias de matéria épica, portanto. Dois textos assim intitulados encontram-se neste segmento do livro (e não é a “cólera de Aquiles Pelida” o que ela vai cantar), o segundo dos quais começa assim: “canta musa / a cólera de bolsonaro / contra a esquerda / contra o socialismo / contra a cor vermelha da bandeira / contra as leis de trânsito / contra a ancine / contra a libido / contra os professores / contra a imprensa / contra o serviço público / contras as ongs / contra as florestas / (‘a porra da árvore’) / contra isso aquilo e aquilo outro // canta musa / a cólera de wilson witzel / de sua metralhadora e de seus snipers / contra a população negra // canta musa / as teorias e perseguições / do astrólogo vagabundo / olavo de carvalho // (...)” (epílio II). 

Todo um inventário de hipocrisias, desmandos e catástrofes vai sendo abrigado no livro. Revisitamos a história recente, que não precisa se repetir como farsa, pois ela parece, já desde sempre, ocorrer como farsa (farsa contraditoriamente trágica, diga-se). É, assim, a reiteração da própria farsa o que o leitor experimenta nos poemas. Não há espaço aqui para inventariar todo esse amplo “inventário”, mas alguns lances merecem ainda destaque. 

Por exemplo, as ações do governador do distrito federal e suas imbricações com a justiça: “o famigerado inganeis (ops) rocha / atual governador do df // em 2014 declarou sobre um dos assassinos / do índio galdino / de quem foi advogado para que assumisse o cargo de / polícia civil // : ele pode levar uma vida normal (...) (“ibaneis advocacia e consultoria”). 

Ou os reflexos das diretrizes dos altos escalões no ensino: “ernesto araújo ministro das relações exteriores do brasil / diz aos quatro ventos que o nazismo é um movimento de / esquerda / her führer repete (‘tem ‘socialista’ na sigla’) // o aluno pergunta isso à professora / que leva bronca do coordenador da série / por ousar falar no assunto // (...) // prova com texto de gregório duvivier / foi anulada / no colégio loyola de bh / a pedido de alguns pais // (...) // no colégio da polícia militar 1 em manaus-am / professor de português foi estapeado / encurralado / trancado numa sala / com a arma apontada para sua cabeça / e xingado de ‘professor de merda’ / pelo tenente-coronel diretor e seus asseclas (...)  (“educação moral e cívica”). 

Ou as relações entre política, imprensa e futebol: “bozo mais paulo tchutchuca (ou melhor paulo tigrão) guedes / e grande elenco / foram ao mineirão / assistir o jogo entre brasil e argentina / bozo desfilou no intervalo e levou vaia / mas a globo de desgovernos velha caftina / não mostrou /  – não sei por que o bozo implica com a rede / tão-querida-dele globo – // (...) // cafú e neymar lamberam as botas até ficar com /  a língua engraxada (...)” (“juiz ladrão”). 

Ou ainda as ameaças e censuras que atingem vozes contrárias: “manifestantes com placas do tipo ‘ - onu + família’ / aos gritos chamando a pensadora judith butler / de bruxa / foram para a porta do sesc pompeia / no dia 7.11.2017 / protestar contra a sua palestra de abertura do seminário / os fins da democracia / queimando boneco com seu rosto / ao som do pai-nosso / (...) // saída do país da antropóloga débora diniz / que defende direitos reprodutivos da mulher / saída do país do político de esquerda jean wyllys / saída do país da filósofa marcia tiburi / – gravemente ameçados de morte // (...) // transformação do coaf em uif / desmonte da embrapa / desmantelamento do ibama / suspensão do fundo-amazônia / censura e descaso com os dados do inpe sobre desmatamento / e posterior exoneração (à força) de seu presidente (...)” (“fahrenheit 451”). Ao final do poema, em chave auto-reflexiva, citação em itálico (extraída do capítulo XLV de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis) comenta os expedientes composicionais deste e de outros textos: “Isto que parece um simples inventário, eram notas / que eu havia tomado para um capítulo triste e vulgar / que não escrevo”. 

Também metaliterário, merece registro um último poema, já entre aqueles que concluem o livro, que justapõe citações de modo improvável e brinca com clichês:

 

 advertência

 

 presque-fini senhoras leitoras senhores leitores!!!

 

esta é uma obra de ficção

qualquer semelhança

com nomes pessoas factos ou situações

da vida real

terá sido mera coincidência

 

                   silvio santos vem aí... lá lá... lá lá lá lá

 

pronto! falei

 

“E mais não digo, porque a Musa topa

Em apa, epa, ipa, opa, upa.”

 

                   este poema “se autodestruirá

                   em cinco segundos”

 

Concluído o trabalho, uma extensa dedicatória – introduzida com a formulação: “esses poemas-impropérios gestados nas coxas / (como zeus gestou dionísio) dedico para”... – desdobra-se ao longo de 30 páginas, elencando grande quantidade de nomes de amigos e figuras do cenário cultural. É como se lêssemos aqui também um apelo a todo um coletivo, não só ao qual a obra se dirige, mas com o qual ela estabelece vínculos de fraternidade e compromisso. 

A poesia brasileira tem vivido, nos últimos anos (e penso sobretudo na poesia “letrada”, na poesia “de livro”), uma crescente incursão pelo engajamento político e social, como desde a década de 1960 talvez não mais tivéssemos visto. Ela responde, assim, de diferentes modos e com seus limitados recursos, às demandas do presente, seja em obras individuais, seja em obras coletivas. Lembro, neste último caso, de antologias como 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015), ou Ato poético: poemas pela democracia (Oficina Raquel, 2020), para citar apenas dois exemplos. Luciana Martins, nestes seus Impropérios, soma sua voz a essas vozes coletivas.        

Mas, glosando o filósofo: é possível ainda “lírica” em tempos de Bolsonaro? Lírica, como a que vimos em seus primeiros livros, a autora parece dizer que não. Ao menos por enquanto. 

 

 

Marcelo Sandmann – jan/fev 2022

 

Lapidar, dilapidar: algumas palavras sobre a poesia de Luciana Martins (2ª parte)


Lyrica 75mg 

“A alma é lírica ou química?”, pergunta Ligia Cademartori em “A fala do corpo”, texto que compõe o posfácio de Lyrica 75 mg, terceiro livro de poemas de Luciana Martins. 

Se a “dor” é assunto recorrente na poesia, esteja associada à experiência do amor ou aos percalços da existência (como se viu, aliás, nos trabalhos anteriores da autora), trata-se habitualmente de dor que incide sobre a “alma” e não propriamente sobre o “corpo” (para recuperar aqui, sem reparos, velha dicotomia). Mas, no caso deste livro, o que se vai tematizar, em primeiro plano, é a “dor física”, com suas óbvias consequências afetivas e existenciais. 

Lyrica 75 mg é composto por 72 poemas, sem título, numerados com algarismos romanos, em sua maioria textos curtos. A capa traz um desenho de Amanda Guerrero, filha da escritora. Nele, vemos o esqueleto de ser fantasioso, algo monstruoso, com rabo, chifre (qual unicórnio), pés grandes, braços arriados, curvo, dobrado sobre si, como que prostrado. “Teus ombros suportam o mundo”, diz o verso de Drummond que será referido mais de uma vez, e do qual a caricatura grotesca parece zombar. 

“Lyrica” (assim com ípsilon) poderia remeter ao modo como a palavra é grafada em latim (lyrĭcus, -a, ­-um, adjetivo oriundo do substantivo lyrica, vocábulo de origem grega), sublinhando o vínculo do livro com a tradição literária. No entanto, Lyrica 75mg é, na verdade, marca e dosagem de fármaco disponível no mercado: Lyrica®. Conhecido também pelo nome genérico “pregabalina”, é remédio indicado para o tratamento de “dor neuropática”, “epilepsia”, “transtorno de ansiedade generalizada (TAG)” e “fibromialgia”. Há algo meio perverso, a meu ver (mesmo que involuntário), no nome comercial deste medicamento, mas que a poeta sabe muito bem reverter, ao aproveitá-lo de maneira irônica (ou dolorosamente auto-irônica). 

O primeiro poema assinala e comenta a palavra que vai estar presente em praticamente todos os textos do livro:

  

I

 

“dor”

é palavra curta

exatamente porque

com a dor

não se tem

o que dizer

acima de uma

sílaba

 

         ai ui

         e outra série de gemidos

 

Ao monossílabo “dor” (e ao conceito algo abstrato nele implicado), correspondem interjeições monossilábicas (mas de teor bastante concreto), que se manifestam pela voz que vem do corpo sofredor. Dizer (elaborar poeticamente a dor), como se vai fazer ao longo dos poemas, é algo já distanciado, uma operação intelectual/emotiva a posteriori, realizada a partir de sensação urgente e primeira (da memória de tal sensação). No momento em que acontece, a dor elide o discurso (e, portanto, qualquer possibilidade de poesia) para ser gemido, ou grito, gesto instintivo (“ai ui / e outra série de gemidos”, dístico que se repete em outros textos). Para aquele que testemunha a dor física alheia, ela de fato só se evidencia por intermédio de sons inarticulados, movimentos convulsivos do corpo. 

A brevidade da palavra “dor” e das interjeições que a expressam encontra contrapartida na brevidade dos poemas e dos versos, compostos, estes, tantas vezes de uma, duas, três ou poucas mais palavras. São versos quase sempre fragmentados, de ritmo trôpego, alquebrados, pouco musicais. Por vezes, as palavras são distribuídas pelo branco da página, em flerte com a poesia visual, posto que a linearidade sintático-discursiva seja mantida. O andamento algo gago, a dificuldade no dizer, de fazer com que a fala flua de modo mais solto, que ela se espraie em versos melódicos, um pouco mais longos – tudo isso incrusta, na própria carne dos poemas, a experiência vital de que são feitos. 

Como se disse, a palavra “dor” ocorre na maioria absoluta dos textos, que são, na verdade, variações exaustivas sobre um mesmo e único tema: “dor que é sempre a mesma / (...) / esta dor não é metafísica / é física / não é metáfora / é metonímia / – a parte dói pelo todo (...)” (poema VI). A dor (que “se viciou neste dorso”) pode ser amante (o grande amor da vida): “já sói ser amor / – única vez que fui amada” (II). Pode ser também amiga: “fiel escudeira / jamais me abandonou / melhor amiga – quando todos / me deixaram (...)” (VII). Não se trata de dor passageira: ela é “matutina / vespertina / noturna / diurna // sempiterna / diuturna” (III). Mas é, sobretudo, “dor escrota”: “– se eu te adjetivasse / de ‘lancinante’ / por exemplo / te daria muita importância / te daria grandeza poética” (XXI).  

Com ou sem “grandeza poética”, o único modo de enfrentá-la, para além da medicina, é via poesia, sem apelo: “estas páginas foram reservadas exclusivamente para / uma ode à dor // (...) // afio perseverante / pontas de lápis / para combatê-la” (poema VIII); “a dor me definha / mas não me define // reajo / com ela me engalfinho (...)” (XIV); “no meio termo entre a vigília e o sono / no lugar em que viceja a dor / forço um resplendor / que a transforma em poesia” (LII). 

Nesse embate (vital e literário), os intertextos serão muitos, a começar pelo célebre “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, retomado e descarnado por Luciana Martins:

 

XII

 

autopsicografia:

         escrevo

         a partir de uma dor

 

         a tida

         a sentida

         a lida

         a não havida

 

Ou ainda Carlos Drummond de Andrade, que surge pelo menos duas vezes. Na primeira delas, interpelado por Paulo Henriques Britto: “‘os ombros suportam o mundo’ – diz o drummond / ‘são as palavras que suportam o mundo / não os ombros’ – contesta o paulo henriques”. Ao que a poeta replica: “no mundo / sobrevivo / por causa / de ambos” (poema XLIV) – “palavras” e “ombros” (alma & corpo, arte & vida, se quisermos). E, mais adiante, em outro poema, ainda a propósito do peso do mundo: “e este pesa / a mão de uma criança / afegã ou síria”, ou “brasileira”, “que fuma crack nas praças” (LIV). 

O risco de derivar a poesia como que em exclusivo de experiência pessoal e urgente (abrindo mão da ficcionalização das sensações e sentimentos, tão certeiramente tematizada por Pessoa no seu “Autopsicografia”) não escapa à autora. Em diálogo com “Cogito”, de Torquato Neto (“eu sou como eu sou / pronome / pessoal intransferível / do homem que iniciei / na medida do impossível”), Luciana Martins entrevê a possibilidade de tornar-se “imprópria para a literatura”:

  

XLVI

  

sob a égide

       da dor

não há como

não      ser

     pessoal

intransferível

            para um distante

                                      eu lírico

viajante

fictício

         de outras paragens

                                      vagante

– fica-se

imprópria para a literatura

 

Mas a autora corre o risco, propondo uma poesia de esgotamentos, reiterativa, como se se vingasse da própria dor ao traduzi-la, à exaustão, em palavras duras – dolorosas palavras. Em dois dos raros poemas mais longos do livro (cada qual ocupando quatro páginas), o recurso à saturação se explicita. No primeiro, a poeta arrola infindáveis verbos, todos remetendo a campos semânticos aparentados (as palavras, no livro, estão dispostas no branco da página em diferentes espaçamentos umas em relação às outras, o que acabo não reproduzindo aqui): “lancina, retalha, aguilhoa, tortura, condói, aflige, lanceia, amachuca, desalenta, acabrunha, crava, golpeia, confrange, contunde, compunge, aperta, atormenta, molesta, penaliza, magoa, (...) oprime, vulnera, rasga, vilipendia, apunhala, ulcera, dardeja, crucia, exulcera, sarja, atenaza, vergasta, macera, calcina, pisa, mata, devora, angustia, amargura, nubla, afugenta, convulsiona, enturva, afeta, sobrecarrega, morde, irrita, mói, exaspera, cansa, atribula, fatiga, caustica, encoleriza, enluta (...) ato crucial: crucificação”, e assim por diante (poema XXXIII, por coincidência, a idade de Cristo quando morto na Cruz). No segundo, que recupera, em seu início, verso final do Canto V do “Inferno” de Dante (“E caddi come corpo morto cade”), é a palavra “corpo” (esse corpo morto que cai) que será adjetivado exaustivamente: “corpo fortuito, sem conforto, torto, quebradiço, frágil, indefeso, corpo-pedra, corpo-vítreo, (...) corpo-discórdia, corpo horrível, grotesco, torpe, sórdido, corpo de borco, corpo em cruz, meu calvário” etc. (poema XXXVI) 

No limite do desespero, o desejo de morte se afigura: “vontade de tomar / o remédio definitivo / para o sono definitivo” (XLVII). Intuito, porém, que não se realiza: “o limiar de dor / é elevado / senão eu já teria / me matado” (LX). 

Estes são exemplos extremos, agônicos, de figurar a dor e a ela reagir. Uma única vez, fresta de esperança se entreabre: “leitor leitora / um dia hei de voltar / a falar da alegria” (LV). Ou lance raro de humor e ironia, como neste (quase) poema-piada:

 

LXV

  

puxei-me os cabelos

com toda a força pra cima

até me soerguer do chão

– atrás do método de terapia barão-de-münchausen

  

No último texto do livro, ainda o vislumbre do fim, em digressão mórbida, a dar a nota definitiva deste terceiro trabalho: “dor / quando eu morrer / vou te pôr / num caixão / e te fechar num sepulcro // lá dentro vais explodir / e tuas partículas / se encontrarão / com o verme”. Depois de se estender, nos versos seguintes, a tratar desse encontro final com o “verme” (“machadiano que fosse”, diz a autora), fica no ar a crua pergunta: “a carcaça desalmada / sem carne sem músculo / depois de largada pelo verme / empanturrado / guardará resquício de dor?” (poema LXXII) 

Relembrando ainda uma vez (e ajustando) “Autopsicografia”, por mais hábil que seja o poeta, não é fácil “fingir que é dor a dor que deveras se sente”. Lyrica 75mg é uma incursão radical pelo sofrimento físico, na tentativa quase impossível de transformá-lo em poesia. São palavras desentranhadas do próprio corpo – dos músculos, dos ossos, da carne, do sangue, da pele, dos nervos. 

Chico Buarque, retomando o mito grego de Hermes (o “deus sonso e ladrão”), lembra que foi ele quem “fez das tripas a primeira lira” – lira que será de Apolo, de Orfeu, de Safo, dos transes dionisíacos, de toda uma tradição. Luciana Martins extrai um instrumento das “próprias tripas”, com o qual vem entoar seu canto dissonante. 

Transcrevo e brevemente comento um último poema, que se conecta bem a essa tradição da poesia, atualizando-a em chave pessoal:

  

XLIX

  

par-

                   ti-

                                      -da-

                                                        em

mil

         pe-

                   -da-

-ços

                                                        sparagmós

                                               “disjecta membra poetae”

 

“Disjecta membra” é expressão latina que designa os fragmentos de textos antigos que sobreviveram à ação do tempo, como no caso dos poemas de Safo e outros líricos gregos. Trata-se de locução cuja fonte é uma sátira de Horácio (“disiecti membra poetae”), e que se poderia traduzir: “membros dispersos/separados do/da poeta” (agora não como fragmentos textuais, mas corpo desmembrado). O grego sparagmós designa o ato de “rasgar”, “destruir”, “mutilar”, nos rituais dionisíacos, quando animais vivos, ou mesmo seres humanos, eram assim sacrificados pelas bacantes, para serem em seguida devorados. É o destino final do poeta Orfeu, numa das versões do mito, vale lembrar. 

O dilaceramento físico, psicológico, verbal acaba por atualizar rito sacrificial que se radica em experiência mítica e literária muito antiga. Se isso não sublima nem redime o sofrimento, pode dar sentido à dor sentida. É por isso, ou para isso, que se faz poesia.


Marcelo Sandmann – dez 2021 

Lapidar, dilapidar: algumas palavras sobre a poesia de Luciana Martins (1ª parte)


Luciana Martins nasceu em São Luís, no Maranhão, em 1964. Morou, durante parte da infância, em Barra do Corda e Itapecuru Mirim, no interior daquele estado. Depois viveu em Brasília, viveu em Curitiba e está de volta a Brasília há já uns bons anos. Publicou até o momento quatro livros de poesia: Lapidação da Aurora (São Paulo: Giordano, 1996); “Espetáculo das Sensações Alheias” (Curitiba: Medusa, 2003); Lyrica 75mg (Rio de Janeiro: 7Letras, 2015); e Impropérios (Curitiba: Kotter, 2019).

São livros distintos entre si, já pelo fôlego de cada um deles, já pela temática (apesar de se poder perceber a reiteração de motivos e assuntos), já pelo modo como a poeta reage, a cada vez, através da palavra, às circunstâncias pessoais e comuns. Relê-los à luz do crítico momento presente e à luz do último livro da autora, que ataca vigorosamente tal momento (e de onde a poesia, ameaçada de morte, parece ter se exilado), é rever trajetória de criação e de vida voltada à palavra literária, num enfrentamento franco das dores pessoais, e, mais recentemente, também das dores coletivas.


Lapidação da Aurora

O primeiro livro, Lapidação da Aurora, é uma plaquete com 36 poemas, em formato pequeno de 10 x 15cm, com capa azul dégradé, sóbria, despojada, sem foto ou ilustração. São poemas curtos (raros os que extrapolam o âmbito de uma página), com versos quase sempre muito curtos. Poesia lírica, contida, centrada nos afetos.

O trabalho se divide em duas partes. Na primeira, “Amar”, lemos 15 poemas, todos eles voltados à temática amorosa, anunciada também já na primeira estrofe do texto de abertura: “aflora da palavra / um campo sedutor / onde planto novamente / o dizer do amor” (“encantamento”). Mais adiante, o homônimo “amar”, aforismático, sentencia: “construir estradas / para se perder”.

O amor que vai ser dito aqui é, fundamentalmente, o amor entre homem e mulher, e pela perspectiva feminina. Um “feminino” que põe muitas vezes em causa papéis tradicionais e reivindica para si também o gesto afirmador:

 

Ulisses


embevecida ficarei

quando chegares

com teus passos

de rei

pisando o tapete

que, durante anos,

em minhas navegações,

teci com as linhas

das borbulhantes vagas

(eu, Penélope, também ousei)

 

Em alguns poemas, o erotismo aflora: “teus dedos, / penetrando de saída / os meus dédalos escuros, / desencaminhando meu corpo / – dúctil à sua passagem – (...)” (“Teseu”); “um vago afago teu / no meu corpo é um estrondo / – asa de pombo / batendo na hora do rush...” (“platônico”). Outros falam do amor quando dor: “de que vem o amargor do amor? / asperezas, facas cegas / insistentemente esfregadas / na carne de nós?” (“questões”). Já outros são pura singeleza e jogo intertextual: “ele me deu / a rosa enfurnada / num plástico decorativo // – a rosa em si / já não seria o enfeite? // rosa... // o que é uma rosa, / Gertrud?” (“lembrancinha”). Mas amor perfeito, apenas o doce de infância, em lance rememorativo:

 

definição

 

Era de polvilho doce

e era decorado

com a marca do garfo.

Gosto que se dissipava

aos poucos,

derretia na boca

como um idílio fugaz.

Assim era o amor-perfeito,

biscoito de minha infância

que, agora, polvilha

minha memória.


A segunda parte se intitula “Vagar” e é composta de 21 poemas. Aqui, a poeta desvela outros aspectos de sua subjetividade, tangenciando muitas vezes melancolia e desalento: “lado oposto: / único lado / exposto / de mim (“disfarce”); “minha configuração verdadeira / é só um monte de livros / uma vontade qualquer de amor / uma infância que adquiri na memória” (“desvelamento”); “o que sou hoje / é apenas sobejo / do que ontem fui” (“pessoando”); “quero dizer mas não digo nada / sangra o canal das lágrimas // se pisar o chão magoo a terra / com minha aspereza” (“domingo”); “vou me abandonar ao relento / do mais alentador desespero” (“desalento”); “estou me sorvendo / estou me sorvendo em goles / estou me sorvendo em goles parcos / e a garganta dói quando me engulo / – líquido ácido” (“salmoura”).

Mas o cansaço existencial pode ser de alguma forma redimido, como indica o último poema do livro:

 

manhã

 

Me recolho fatigada

com o peso de um mundo fatídico.

Amanhã acordarei resplandecente,

inebriada pela leveza dos lençóis

que me envolvem o corpo (essa minha proteção).

E, ao olhar pela janela de meu quarto,

vislumbrarei a auréola embranquecida

que envolve os edifícios e as casas,

a auréola de granito que me envolve,

a auréola de doçura que envolve os homens.

Diante dessa paisagem matinal nada farei,

a não ser a lapidação,

trabalhosa e realizadora,

da aurora.

 

 “Lapidação da aurora” é expressão bela e sugestiva. O verbo “lapidar”, em uma de suas acepções, significa cortar, desbastar, polir uma pedra preciosa bruta até que ela atinja o máximo de sua beleza e brilho. Daí um sentido segundo, figurado: aperfeiçoar, aprimorar, burilar. Pode ser o trabalho da poeta com as palavras, mas também com sua própria existência. No caso da “lapidação da aurora”, pode ser o trabalho do sujeito com o tempo, próprio e coletivo, que se renova. À noite (à noite da alma e do mundo), segue a manhã do novo dia, com suas promessas de realização.




“Espetáculo das sensações alheias” 

O livro seguinte, “Espetáculo das sensações alheias” (aspas propositais no título), com 64 poemas, retoma e expande temas e formas presentes no livro de estreia. São muitos os textos em que a poeta fala de si, de seu modo singular de estar no mundo. São muitos os que falam do amor, mas agora sobretudo pela ótica do desencontro. Também o jogo intertextual se intensifica.

O título (e daí as aspas) é expressão que se encontra no Capítulo XXII de Dom Casmurro, de Machado de Assis, um dos capítulos da parte inicial do romance, justamente intitulado “Sensações alheias”. Nele, Bentinho e prima Justina conversam sobre Capitu. Desconfiada do envolvimento dos dois, prima Justina tece elogios aos atributos da moça, para sondar as reações do rapaz. Este reage entusiasmado aos elogios e os reitera. Mais tarde, já à noite em seu quarto, Bentinho relembra o episódio: “Só então eu senti que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos. (...) Creio que prima Justina achou no espetáculo das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que narram.”

A par do contexto específico de cena e personagens, trata-se também de reflexão a respeito do efeito da literatura sobre os leitores. “O espetáculo das sensações alheias”, devidamente apresentado numa obra, é prazeroso, pois reaviva as nossas próprias. No livro, “as sensações” de Luciana Martins se dão em “espetáculo”, num misto de confissão e jogo de cena. Na epígrafe de umas das partes, colhida em Yi Sáng, a propósito, pode-se ler: “O sentimento é uma espécie de pose”.

A consciência da situação teatral se evidencia no subtítulo, que não está na capa, e que só lemos ao folhear as primeiras páginas: “drama lírico em três atos”. A capa, aliás, colorida (verdes, azuis, rosas, pretos se destacam), traz uma foto desfocada de duas mulheres, de costas, caminhando. A que está mais à esquerda, ao que tudo indica, é a própria autora. A que está mais à direita, de saia curta de bailarina, chapéu e botas, parece personagem saída de algum tipo de representação cênica. Poderia se constituir numa espécie de duplo da primeira. A foto pouco nítida sugere que o espetáculo que se vai dar aos olhos do leitor, ao mesmo tempo em que promete revelar, pode não revelar muita claramente. A segmentação interna do livro glosa o mote presente no subtítulo: trata-se de um “drama lírico” com “Prólogo”, “Párodo”, “Primeiro ato”, “Segundo ato” e “Terceiro ato”.

“Prólogo” traz um único poema, “evangelho”, o primeiro um pouco mais extenso de Luciana Martins. E a “boa notícia” (que é o que significa “evangelho” em grego) começa assim: “Escrava do amor, / seja ele verdadeiro / ou apenas ilusão, / quem sou eu / senão alguém / que ano que vem / será feliz? / Inspirada em Noite de reis de Shakespeare, concluo: / tudo fenece se o amor falece.” E está anunciado desde já um dos temas centrais do livro: novamente a experiência do amor, agora sobretudo a partir do sentimento da perda: “Levaram de mim as palavras; / tudo isso enquanto eu pegava um solzinho lá fora, / despretensiosamente, e, diga-se de passagem, desarmada. / Apenas o livro na mão. / O título do filme já conta tudo: / Dormindo com o inimigo. / Nem é preciso assistir, óbvio. / (...) / Não suporto que me dilacerem os membros, você é / testemunha. / E, no entanto, foi só virar as costas... / punhal. / Até hoje ninguém conseguiu tirar.” Se o sentimento de traição se expressa aqui, a autora reconhece que também é responsável pelo modo como tudo se configura: “Mas seria bom esclarecer que culpa ninguém tem: / sou vítima de minha própria armadura; / não esculpi a carcaça muito bem / de maneira que qualquer um logra / trespassar-me”.

Prosaico e confessional, em meio ao franco desabafo, o poema tira rendimento dos seus muitos e irônicos jogos intertextuais. Se Shakespeare e o cinema já foram convocados, é Fernando Pessoa do célebre “Mar Portuguez”, de Mensagem, que surge em seguida. Diz a poeta: “Os anjos engessados / não podem singrar a dor. / Molde-se a ela, pois pois! / Passar ‘além do Bojador’, Fernando, / só se for num navio pirata. / Oficialmente não dá certo, / porque são terríveis as tormentas. / Amor: milagre ou logro?” Para “passar além do Bojador” é preciso “passar além da dor”, diz Pessoa sobre a aventura marítima portuguesa. Assim, a poeta vai registrar as suas (dores e aventuras), que são de amor (“milagre ou logro?”), mas também dores de existência, tema que se desdobra da experiência amorosa para se tornar outro assunto importante: “Doente, doente, doente, entretanto. / O ente que dói é o ser? / Responda-me rápido, Heidegger! / Senão vou recorrer ao / Nietzsche / ou a minha mãe.” E tudo se conclui com tirada que remete ao texto bíblico que dá título ao poema e abre perspectiva para alguma espécie de “ressurreição”: “‘Levanta-te e anda’ / disse Jesus ao homem que jazia enfermo; / eu, espertinha, aproveitei o milagre bíblico / e também saí do leito de morte.”

“Párodo” é o segmento seguinte, igualmente constituído de um único poema, “fala do coro”. No teatro grego antigo, “párodo” é o momento em que o “coro”, personagem coletiva, entra em cena e declama ou canta, executando sua coreografia. Aqui, neste breve poema, a voz que se expressa observa de fora a própria poeta: “Sacode as grades invisíveis do corpo, procurando debalde sair de si / para entrar, por exemplo, na mulher ‘sem metafísica’ que está do outro lado / da rua e que se deixa ver pela janela do quarto onde nossa poeta escreve.” Novamente o colóquio com Fernando Pessoa, agora Álvaro de Campos, e seu célebre “Tabacaria”: “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” O vertiginoso auto-exame que segue estes versos iniciais só vai se dirimir no final da composição, quando o “poeta das sensações”, da janela do quarto em que escreve, observa o movimento da tabacaria em frente, e reconhece alguém, um homem comum, o “Esteves sem metafísica”: “Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. / Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo / Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.” Em Luciana Martins, o “coro” olha a poeta em seu quarto, que escreve e que tenta sair de si para entrar na “mulher sem metafísica” do outro lado da rua, que ela observa. Um se oferece em espetáculo ao olhar do outro. E o que se impõe é a mediação pela poesia: “Tentar contar o acontecido também / é uma maneira de fazer nascer um novo caos. // Mas cumpria enfrentar a linguagem (...)”. E a “fala do coro” então se conclui, dando início ao “drama lírico em três atos”: “Era o que faltava para o começo”.

“Primeiro ato” traz poemas que falam da própria poeta. Neles, tristeza, angústia, ansiedade dão o tom. A estrofe final de “sintoma” é hiperbólica: “minhas lágrimas / são tão pródigas / que uso toalhas para enxugá-las”. No poema “na batucada”, depois de passar a noite dançando “no ensaio do Ilê Ayê” com um amigo, no carnaval da Bahia, ela ouve dele constatação fulminante: “Você é alegre como um réquiem”. Em “táticas para atacar a depressão”, a poeta arrola três, entre elas, em tom de galhofa: “escolher calcinha e meia-calça de R$ 1,99 numa lojinha do centro”. Em “melindre”, o suicídio se afigura no horizonte: “se não acabei com minha vida até o momento / foi por receio de parecer indelicada”. 

Mas o retrato mais acabado do sujeito aparece em “eu”, que elenca títulos de obras literárias, nos quais a autora encontra (tanto nas obras quanto nos títulos) elementos com que se definir:

 

eu

 

viagem ao fundo da noite

na vertigem do dia

perto do coração selvagem

terra devastada

a igreja do diabo

vinhas da ira

o morro dos ventos uivantes

uma canção desesperada

as flores do mal

crime e castigo

o idiota

a mulher desiludida

em busca do tempo perdido

e o vento levou

cem anos de solidão

 

Em “Segundo ato”, os poemas giram quase todos em torno da temática amorosa. Abundam aqueles que tratam de desencontros, quando não francamente do processo de separação.

O “naufrágio” da relação é anunciado em “efeitos hollywoodianos” (as referências ao cinema, além da literatura, como se vê, são muitas): “um titanic naufragou / dentro do meu coração // partiu-se-me o peito / ao meio / – o amor era o recheio”. O poema “fatalismo” é explícito a respeito: “nossa vida era puro deslumbramento / veio um dia / depois outro / e o túmulo do amor floriu / à nossa espera”. A partilha dos bens é tematizada, como em “partilha 2”, que fala de divisão das mais duras para um casal que ama a literatura: “difícil / dividir / meio a meio / as dedicatórias / nos livros / que ganhamos juntos / – único registro da eternidade daquele amor”. Coisas são levadas, outras deixadas, a ausência se faz assim também presença: “esta flor de violeta sobre a mesa / é tua presença deixada na casa // é o selo violento de tua vida / que me estreita” (“duração”). A fantasia com relação à permanência do amor aparece em outro poema, aqui com recurso ao olhar de fora, em que a poeta observa a si mesma como terceira pessoa: “sob o sol / então se via a passear / de mãos dadas com ele / velhinha já / as cãs de prata / compondo com o ouro / do dia um matiz / de eternidade suprema” (“idílio”).

O segundo livro de Luciana Martins, como se disse, aprofunda assuntos presentes no primeiro, deixando entrever também o lapso de tempo que deu vida aos poemas a cada momento da experiência. Resposta (ou complemento) ao “Ulisses”, de Lapidação da Aurora, é “lamento de Penélope”, outro que vale transcrever na íntegra:

 

lamento de Penélope

 

de rima em rima

vou removendo a resina

de poeta sem verso e sem poema

de mulher sem nome e sem semema

de anjo sem sêmen e só dilema


de rio em rio

vou cavando o fundo atrás de sono

vou fazendo do leito o escorredouro

de minha mágoa tristeza e abandono

 

tendo ele se perdido na ilha de Circe

– aqui do meu lado só há o fantasma –

fui vendo sem que ninguém visse

que amor não é coisa que se plasma

 

vou arrastando o corpo pela casa

vou varrendo pedaços de asa

vou desfazendo a costura

das colchas de cama

 

– Eis o destino desta dama.

 

Mas se o amor morre, ele pode também ressuscitar, como o Lázaro resgatado por Jesus no poema inicial “evangelho”, em cujo milagre a autora toma carona. Alguns poucos textos falam de recomeços, como “impaciência”: “– vou amar de novo? / perguntei ao I Ching // e ele me respondeu: ‘limite’ // eu entendi o enigma / desde o começo, / mas o desobedeci // e amei de novo insistentemente / febrilmente passionalmente / inteiramente.” Ou ainda “epitalâmio”: “depois de tanto silêncio, / vozes, vozes, vozes altas; / piadas, gargalhadas, / conversa fiada... // eis-me (de novo) acompanhada”.

Em “Terceiro ato”, temos textos que recordam a infância em certas localidades no Maranhão, ou que tratam da volta a esses lugares em tempos de férias, ou que criam espaços de idílio para onde vicariamente se pode retornar. A epígrafe, com versos de Cacaso que conversam com “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, é indicativa: “Minha pátria é minha infância: / por isso vivo no exílio.” Este segmento do livro abre, aliás, também com uma “canção do exílio”: “no Escondido / o pequeno brejo / era meu Tejo // a folha do bananal / minha nau // sob o pé / de pitomba / de dor nem sombra // (...) // no Escondido / tempo ido / virava garapa doce (...)”.

O poema “minhas férias” evoca o povoado de Suja Pé, no município de Barra do Corda: “O Sujapé / fica cheio de rãs / na época das chuvas // as crianças correm / com medo / mas a gente as consola”. “Barra do Corda no Maranhão” enumera lembranças (“tudo na santa paz”), entre elas os banhos de rio: “nenhuma mixórdia / no coração / nem sucuruiú / no rio // e eu / descendo por água / numa enorme / câmara / de ar”. A poeta passeia por certos lugares com a sensação de liberdade de alguém que acabou de sair da cadeia, como em “habeas corpus”, revendo personagens meio míticas como “o mendigo João Popó”, em quem os primos jogavam pedras; “o mendigo de pescoço mole”, de “rosto sempre virado pra cima”; ou “o Má-Doido”, que um dia ela havia visto “acorrentado”, “se debatendo numa casa de chão batido”. No retorno a tais lugares, a sensação de um tempo como que intocado: “Aqui inda é como deixei.” 

Nomes de amigos e familiares aparecem nas dedicatórias dos textos: Jorge Abreu, Antônia, Fábia, Larissa, Liana, Bruna. A filha Amanda, então pequena, é assunto de “a herdeira”: “o cabelo de Amanda / é atravessado pelo / silvo do mar // – menina livre / que eu olho correr / sem falha de infância // ‘pequenino grão de areia’”. A citação de canção de Dalva de Oliveira neste último verso corre a par de outra, “animula vagula blandula”, verso do imperador romano Adriano, que aparece como título do poema imediatamente anterior, também endereçado a outra criança: “alma pequena / bem-vinda / branda // anda! / vem e finda / nossa dor / nefanda”.

As recordações ou a revisitação de espaços da infância funcionam como remédio para as dores do presente. Lá, “de dor nem sombra”; “o tempo ido” é “garapa doce”; não há “nenhuma mixórdia no coração”; está “tudo na santa paz”; “nossa dor nefanda” pode findar, como se viu nos versos acima transcritos.

Os diálogos com a literatura, de poeta-leitora assídua, marcam igualmente vários textos de “Terceiro ato”. Livro de contos de Gustav Flaubert é referido em “flaubertiana”: “ah como tem dia / que eu queria / ter apenas un coeur simple / e não um coração dilacerado”. Ao primeiro livro de poemas de Jorge Luis Borges (no qual ele fala de sua cidade natal depois de passar alguns anos com a família na Europa), é dedicado “sobre Fervor de Buenos Aires”, a ecoar as revisitações da autora à infância neste segmento do livro: “passeio na tarde / de um Borges / pleno de jovialidade / – rapaz itinerante / de ruas e rios, mas também / mares e mármores”. Rainer Maria Rilke, nome forte da poesia moderna, é referido desde o título deste poema:

 

a flor de Rilke

 

      para Larissa

 

A rosa quando nasceu

sentia o lado de dentro de si

e temia que o mundo fosse

apenas pétalas condensadas.

 

Quando se abriu

pôde viver a exuberância do jardim

o festejo de muitas borboletas

e insetos.

 

Vislumbrou o olho dos gatos

sentiu o toque macio do orvalho

e a mão do anjo que a colheu

para a morte.

 

“Ein jeder Engel ist schrecklich” (“todo Anjo é terrível”), diz Rilke já nos versos iniciais da “Primeira” de suas Elegias de Duíno. Seres que transitam entre o Céu e a Terra, entre a realidade positiva e a transcendente, os “Anjos” rilkeanos estão sempre a nos lembrar dos limites do humano, da efemeridade da existência. A “rosa”, símbolo clássico dessa mesma efemeridade (Ronsard, Malherbe, Francisco de Vasconcelos Coutinho), depois de seu breve apogeu, vem ser justamente colhida aqui por um deles.

Se Machado, Pessoa, Borges, Rilke, autores densos, são leituras diletas, a poesia singela de Casimiro de Abreu pode servir de bom antídoto, como no curtíssimo “descompromisso”, menos poema do que chiste, penúltimo do livro: “estava tão enjoada de coisas ‘herméticas’ e ‘profundas’ / que fui ler Casimiro de Abreu”.

E o último poema, ainda mais breve, composto de um único verso, intitulado “fim”, conclui o “Espetáculo das sensações alheias” deixando no ar pergunta enigmática e nos lembrando ainda uma vez de brevidades e finitudes: “a vida não tem cortinas?”. Se tem, como costumam ter os teatros, é perguntar também quem vem fechá-las (ao fim da vida – ou do livro).


Marcelo Sandmann – nov 2021

 


 

10 poemas de João Luís Barreto Guimarães

  João Luís Barreto Guimarães nasceu na cidade do Porto, a 3 de junho de 1969. É poeta e tradutor, com diversos títulos publicados em Portug...