Lapidar, dilapidar: algumas palavras sobre a poesia de Luciana Martins (1ª parte)


Luciana Martins nasceu em São Luís, no Maranhão, em 1964. Morou, durante parte da infância, em Barra do Corda e Itapecuru Mirim, no interior daquele estado. Depois viveu em Brasília, viveu em Curitiba e está de volta a Brasília há já uns bons anos. Publicou até o momento quatro livros de poesia: Lapidação da Aurora (São Paulo: Giordano, 1996); “Espetáculo das Sensações Alheias” (Curitiba: Medusa, 2003); Lyrica 75mg (Rio de Janeiro: 7Letras, 2015); e Impropérios (Curitiba: Kotter, 2019).

São livros distintos entre si, já pelo fôlego de cada um deles, já pela temática (apesar de se poder perceber a reiteração de motivos e assuntos), já pelo modo como a poeta reage, a cada vez, através da palavra, às circunstâncias pessoais e comuns. Relê-los à luz do crítico momento presente e à luz do último livro da autora, que ataca vigorosamente tal momento (e de onde a poesia, ameaçada de morte, parece ter se exilado), é rever trajetória de criação e de vida voltada à palavra literária, num enfrentamento franco das dores pessoais, e, mais recentemente, também das dores coletivas.


Lapidação da Aurora

O primeiro livro, Lapidação da Aurora, é uma plaquete com 36 poemas, em formato pequeno de 10 x 15cm, com capa azul dégradé, sóbria, despojada, sem foto ou ilustração. São poemas curtos (raros os que extrapolam o âmbito de uma página), com versos quase sempre muito curtos. Poesia lírica, contida, centrada nos afetos.

O trabalho se divide em duas partes. Na primeira, “Amar”, lemos 15 poemas, todos eles voltados à temática amorosa, anunciada também já na primeira estrofe do texto de abertura: “aflora da palavra / um campo sedutor / onde planto novamente / o dizer do amor” (“encantamento”). Mais adiante, o homônimo “amar”, aforismático, sentencia: “construir estradas / para se perder”.

O amor que vai ser dito aqui é, fundamentalmente, o amor entre homem e mulher, e pela perspectiva feminina. Um “feminino” que põe muitas vezes em causa papéis tradicionais e reivindica para si também o gesto afirmador:

 

Ulisses


embevecida ficarei

quando chegares

com teus passos

de rei

pisando o tapete

que, durante anos,

em minhas navegações,

teci com as linhas

das borbulhantes vagas

(eu, Penélope, também ousei)

 

Em alguns poemas, o erotismo aflora: “teus dedos, / penetrando de saída / os meus dédalos escuros, / desencaminhando meu corpo / – dúctil à sua passagem – (...)” (“Teseu”); “um vago afago teu / no meu corpo é um estrondo / – asa de pombo / batendo na hora do rush...” (“platônico”). Outros falam do amor quando dor: “de que vem o amargor do amor? / asperezas, facas cegas / insistentemente esfregadas / na carne de nós?” (“questões”). Já outros são pura singeleza e jogo intertextual: “ele me deu / a rosa enfurnada / num plástico decorativo // – a rosa em si / já não seria o enfeite? // rosa... // o que é uma rosa, / Gertrud?” (“lembrancinha”). Mas amor perfeito, apenas o doce de infância, em lance rememorativo:

 

definição

 

Era de polvilho doce

e era decorado

com a marca do garfo.

Gosto que se dissipava

aos poucos,

derretia na boca

como um idílio fugaz.

Assim era o amor-perfeito,

biscoito de minha infância

que, agora, polvilha

minha memória.


A segunda parte se intitula “Vagar” e é composta de 21 poemas. Aqui, a poeta desvela outros aspectos de sua subjetividade, tangenciando muitas vezes melancolia e desalento: “lado oposto: / único lado / exposto / de mim (“disfarce”); “minha configuração verdadeira / é só um monte de livros / uma vontade qualquer de amor / uma infância que adquiri na memória” (“desvelamento”); “o que sou hoje / é apenas sobejo / do que ontem fui” (“pessoando”); “quero dizer mas não digo nada / sangra o canal das lágrimas // se pisar o chão magoo a terra / com minha aspereza” (“domingo”); “vou me abandonar ao relento / do mais alentador desespero” (“desalento”); “estou me sorvendo / estou me sorvendo em goles / estou me sorvendo em goles parcos / e a garganta dói quando me engulo / – líquido ácido” (“salmoura”).

Mas o cansaço existencial pode ser de alguma forma redimido, como indica o último poema do livro:

 

manhã

 

Me recolho fatigada

com o peso de um mundo fatídico.

Amanhã acordarei resplandecente,

inebriada pela leveza dos lençóis

que me envolvem o corpo (essa minha proteção).

E, ao olhar pela janela de meu quarto,

vislumbrarei a auréola embranquecida

que envolve os edifícios e as casas,

a auréola de granito que me envolve,

a auréola de doçura que envolve os homens.

Diante dessa paisagem matinal nada farei,

a não ser a lapidação,

trabalhosa e realizadora,

da aurora.

 

 “Lapidação da aurora” é expressão bela e sugestiva. O verbo “lapidar”, em uma de suas acepções, significa cortar, desbastar, polir uma pedra preciosa bruta até que ela atinja o máximo de sua beleza e brilho. Daí um sentido segundo, figurado: aperfeiçoar, aprimorar, burilar. Pode ser o trabalho da poeta com as palavras, mas também com sua própria existência. No caso da “lapidação da aurora”, pode ser o trabalho do sujeito com o tempo, próprio e coletivo, que se renova. À noite (à noite da alma e do mundo), segue a manhã do novo dia, com suas promessas de realização.




“Espetáculo das sensações alheias” 

O livro seguinte, “Espetáculo das sensações alheias” (aspas propositais no título), com 64 poemas, retoma e expande temas e formas presentes no livro de estreia. São muitos os textos em que a poeta fala de si, de seu modo singular de estar no mundo. São muitos os que falam do amor, mas agora sobretudo pela ótica do desencontro. Também o jogo intertextual se intensifica.

O título (e daí as aspas) é expressão que se encontra no Capítulo XXII de Dom Casmurro, de Machado de Assis, um dos capítulos da parte inicial do romance, justamente intitulado “Sensações alheias”. Nele, Bentinho e prima Justina conversam sobre Capitu. Desconfiada do envolvimento dos dois, prima Justina tece elogios aos atributos da moça, para sondar as reações do rapaz. Este reage entusiasmado aos elogios e os reitera. Mais tarde, já à noite em seu quarto, Bentinho relembra o episódio: “Só então eu senti que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos. (...) Creio que prima Justina achou no espetáculo das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que narram.”

A par do contexto específico de cena e personagens, trata-se também de reflexão a respeito do efeito da literatura sobre os leitores. “O espetáculo das sensações alheias”, devidamente apresentado numa obra, é prazeroso, pois reaviva as nossas próprias. No livro, “as sensações” de Luciana Martins se dão em “espetáculo”, num misto de confissão e jogo de cena. Na epígrafe de umas das partes, colhida em Yi Sáng, a propósito, pode-se ler: “O sentimento é uma espécie de pose”.

A consciência da situação teatral se evidencia no subtítulo, que não está na capa, e que só lemos ao folhear as primeiras páginas: “drama lírico em três atos”. A capa, aliás, colorida (verdes, azuis, rosas, pretos se destacam), traz uma foto desfocada de duas mulheres, de costas, caminhando. A que está mais à esquerda, ao que tudo indica, é a própria autora. A que está mais à direita, de saia curta de bailarina, chapéu e botas, parece personagem saída de algum tipo de representação cênica. Poderia se constituir numa espécie de duplo da primeira. A foto pouco nítida sugere que o espetáculo que se vai dar aos olhos do leitor, ao mesmo tempo em que promete revelar, pode não revelar muita claramente. A segmentação interna do livro glosa o mote presente no subtítulo: trata-se de um “drama lírico” com “Prólogo”, “Párodo”, “Primeiro ato”, “Segundo ato” e “Terceiro ato”.

“Prólogo” traz um único poema, “evangelho”, o primeiro um pouco mais extenso de Luciana Martins. E a “boa notícia” (que é o que significa “evangelho” em grego) começa assim: “Escrava do amor, / seja ele verdadeiro / ou apenas ilusão, / quem sou eu / senão alguém / que ano que vem / será feliz? / Inspirada em Noite de reis de Shakespeare, concluo: / tudo fenece se o amor falece.” E está anunciado desde já um dos temas centrais do livro: novamente a experiência do amor, agora sobretudo a partir do sentimento da perda: “Levaram de mim as palavras; / tudo isso enquanto eu pegava um solzinho lá fora, / despretensiosamente, e, diga-se de passagem, desarmada. / Apenas o livro na mão. / O título do filme já conta tudo: / Dormindo com o inimigo. / Nem é preciso assistir, óbvio. / (...) / Não suporto que me dilacerem os membros, você é / testemunha. / E, no entanto, foi só virar as costas... / punhal. / Até hoje ninguém conseguiu tirar.” Se o sentimento de traição se expressa aqui, a autora reconhece que também é responsável pelo modo como tudo se configura: “Mas seria bom esclarecer que culpa ninguém tem: / sou vítima de minha própria armadura; / não esculpi a carcaça muito bem / de maneira que qualquer um logra / trespassar-me”.

Prosaico e confessional, em meio ao franco desabafo, o poema tira rendimento dos seus muitos e irônicos jogos intertextuais. Se Shakespeare e o cinema já foram convocados, é Fernando Pessoa do célebre “Mar Portuguez”, de Mensagem, que surge em seguida. Diz a poeta: “Os anjos engessados / não podem singrar a dor. / Molde-se a ela, pois pois! / Passar ‘além do Bojador’, Fernando, / só se for num navio pirata. / Oficialmente não dá certo, / porque são terríveis as tormentas. / Amor: milagre ou logro?” Para “passar além do Bojador” é preciso “passar além da dor”, diz Pessoa sobre a aventura marítima portuguesa. Assim, a poeta vai registrar as suas (dores e aventuras), que são de amor (“milagre ou logro?”), mas também dores de existência, tema que se desdobra da experiência amorosa para se tornar outro assunto importante: “Doente, doente, doente, entretanto. / O ente que dói é o ser? / Responda-me rápido, Heidegger! / Senão vou recorrer ao / Nietzsche / ou a minha mãe.” E tudo se conclui com tirada que remete ao texto bíblico que dá título ao poema e abre perspectiva para alguma espécie de “ressurreição”: “‘Levanta-te e anda’ / disse Jesus ao homem que jazia enfermo; / eu, espertinha, aproveitei o milagre bíblico / e também saí do leito de morte.”

“Párodo” é o segmento seguinte, igualmente constituído de um único poema, “fala do coro”. No teatro grego antigo, “párodo” é o momento em que o “coro”, personagem coletiva, entra em cena e declama ou canta, executando sua coreografia. Aqui, neste breve poema, a voz que se expressa observa de fora a própria poeta: “Sacode as grades invisíveis do corpo, procurando debalde sair de si / para entrar, por exemplo, na mulher ‘sem metafísica’ que está do outro lado / da rua e que se deixa ver pela janela do quarto onde nossa poeta escreve.” Novamente o colóquio com Fernando Pessoa, agora Álvaro de Campos, e seu célebre “Tabacaria”: “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” O vertiginoso auto-exame que segue estes versos iniciais só vai se dirimir no final da composição, quando o “poeta das sensações”, da janela do quarto em que escreve, observa o movimento da tabacaria em frente, e reconhece alguém, um homem comum, o “Esteves sem metafísica”: “Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. / Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo / Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.” Em Luciana Martins, o “coro” olha a poeta em seu quarto, que escreve e que tenta sair de si para entrar na “mulher sem metafísica” do outro lado da rua, que ela observa. Um se oferece em espetáculo ao olhar do outro. E o que se impõe é a mediação pela poesia: “Tentar contar o acontecido também / é uma maneira de fazer nascer um novo caos. // Mas cumpria enfrentar a linguagem (...)”. E a “fala do coro” então se conclui, dando início ao “drama lírico em três atos”: “Era o que faltava para o começo”.

“Primeiro ato” traz poemas que falam da própria poeta. Neles, tristeza, angústia, ansiedade dão o tom. A estrofe final de “sintoma” é hiperbólica: “minhas lágrimas / são tão pródigas / que uso toalhas para enxugá-las”. No poema “na batucada”, depois de passar a noite dançando “no ensaio do Ilê Ayê” com um amigo, no carnaval da Bahia, ela ouve dele constatação fulminante: “Você é alegre como um réquiem”. Em “táticas para atacar a depressão”, a poeta arrola três, entre elas, em tom de galhofa: “escolher calcinha e meia-calça de R$ 1,99 numa lojinha do centro”. Em “melindre”, o suicídio se afigura no horizonte: “se não acabei com minha vida até o momento / foi por receio de parecer indelicada”. 

Mas o retrato mais acabado do sujeito aparece em “eu”, que elenca títulos de obras literárias, nos quais a autora encontra (tanto nas obras quanto nos títulos) elementos com que se definir:

 

eu

 

viagem ao fundo da noite

na vertigem do dia

perto do coração selvagem

terra devastada

a igreja do diabo

vinhas da ira

o morro dos ventos uivantes

uma canção desesperada

as flores do mal

crime e castigo

o idiota

a mulher desiludida

em busca do tempo perdido

e o vento levou

cem anos de solidão

 

Em “Segundo ato”, os poemas giram quase todos em torno da temática amorosa. Abundam aqueles que tratam de desencontros, quando não francamente do processo de separação.

O “naufrágio” da relação é anunciado em “efeitos hollywoodianos” (as referências ao cinema, além da literatura, como se vê, são muitas): “um titanic naufragou / dentro do meu coração // partiu-se-me o peito / ao meio / – o amor era o recheio”. O poema “fatalismo” é explícito a respeito: “nossa vida era puro deslumbramento / veio um dia / depois outro / e o túmulo do amor floriu / à nossa espera”. A partilha dos bens é tematizada, como em “partilha 2”, que fala de divisão das mais duras para um casal que ama a literatura: “difícil / dividir / meio a meio / as dedicatórias / nos livros / que ganhamos juntos / – único registro da eternidade daquele amor”. Coisas são levadas, outras deixadas, a ausência se faz assim também presença: “esta flor de violeta sobre a mesa / é tua presença deixada na casa // é o selo violento de tua vida / que me estreita” (“duração”). A fantasia com relação à permanência do amor aparece em outro poema, aqui com recurso ao olhar de fora, em que a poeta observa a si mesma como terceira pessoa: “sob o sol / então se via a passear / de mãos dadas com ele / velhinha já / as cãs de prata / compondo com o ouro / do dia um matiz / de eternidade suprema” (“idílio”).

O segundo livro de Luciana Martins, como se disse, aprofunda assuntos presentes no primeiro, deixando entrever também o lapso de tempo que deu vida aos poemas a cada momento da experiência. Resposta (ou complemento) ao “Ulisses”, de Lapidação da Aurora, é “lamento de Penélope”, outro que vale transcrever na íntegra:

 

lamento de Penélope

 

de rima em rima

vou removendo a resina

de poeta sem verso e sem poema

de mulher sem nome e sem semema

de anjo sem sêmen e só dilema


de rio em rio

vou cavando o fundo atrás de sono

vou fazendo do leito o escorredouro

de minha mágoa tristeza e abandono

 

tendo ele se perdido na ilha de Circe

– aqui do meu lado só há o fantasma –

fui vendo sem que ninguém visse

que amor não é coisa que se plasma

 

vou arrastando o corpo pela casa

vou varrendo pedaços de asa

vou desfazendo a costura

das colchas de cama

 

– Eis o destino desta dama.

 

Mas se o amor morre, ele pode também ressuscitar, como o Lázaro resgatado por Jesus no poema inicial “evangelho”, em cujo milagre a autora toma carona. Alguns poucos textos falam de recomeços, como “impaciência”: “– vou amar de novo? / perguntei ao I Ching // e ele me respondeu: ‘limite’ // eu entendi o enigma / desde o começo, / mas o desobedeci // e amei de novo insistentemente / febrilmente passionalmente / inteiramente.” Ou ainda “epitalâmio”: “depois de tanto silêncio, / vozes, vozes, vozes altas; / piadas, gargalhadas, / conversa fiada... // eis-me (de novo) acompanhada”.

Em “Terceiro ato”, temos textos que recordam a infância em certas localidades no Maranhão, ou que tratam da volta a esses lugares em tempos de férias, ou que criam espaços de idílio para onde vicariamente se pode retornar. A epígrafe, com versos de Cacaso que conversam com “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, é indicativa: “Minha pátria é minha infância: / por isso vivo no exílio.” Este segmento do livro abre, aliás, também com uma “canção do exílio”: “no Escondido / o pequeno brejo / era meu Tejo // a folha do bananal / minha nau // sob o pé / de pitomba / de dor nem sombra // (...) // no Escondido / tempo ido / virava garapa doce (...)”.

O poema “minhas férias” evoca o povoado de Suja Pé, no município de Barra do Corda: “O Sujapé / fica cheio de rãs / na época das chuvas // as crianças correm / com medo / mas a gente as consola”. “Barra do Corda no Maranhão” enumera lembranças (“tudo na santa paz”), entre elas os banhos de rio: “nenhuma mixórdia / no coração / nem sucuruiú / no rio // e eu / descendo por água / numa enorme / câmara / de ar”. A poeta passeia por certos lugares com a sensação de liberdade de alguém que acabou de sair da cadeia, como em “habeas corpus”, revendo personagens meio míticas como “o mendigo João Popó”, em quem os primos jogavam pedras; “o mendigo de pescoço mole”, de “rosto sempre virado pra cima”; ou “o Má-Doido”, que um dia ela havia visto “acorrentado”, “se debatendo numa casa de chão batido”. No retorno a tais lugares, a sensação de um tempo como que intocado: “Aqui inda é como deixei.” 

Nomes de amigos e familiares aparecem nas dedicatórias dos textos: Jorge Abreu, Antônia, Fábia, Larissa, Liana, Bruna. A filha Amanda, então pequena, é assunto de “a herdeira”: “o cabelo de Amanda / é atravessado pelo / silvo do mar // – menina livre / que eu olho correr / sem falha de infância // ‘pequenino grão de areia’”. A citação de canção de Dalva de Oliveira neste último verso corre a par de outra, “animula vagula blandula”, verso do imperador romano Adriano, que aparece como título do poema imediatamente anterior, também endereçado a outra criança: “alma pequena / bem-vinda / branda // anda! / vem e finda / nossa dor / nefanda”.

As recordações ou a revisitação de espaços da infância funcionam como remédio para as dores do presente. Lá, “de dor nem sombra”; “o tempo ido” é “garapa doce”; não há “nenhuma mixórdia no coração”; está “tudo na santa paz”; “nossa dor nefanda” pode findar, como se viu nos versos acima transcritos.

Os diálogos com a literatura, de poeta-leitora assídua, marcam igualmente vários textos de “Terceiro ato”. Livro de contos de Gustav Flaubert é referido em “flaubertiana”: “ah como tem dia / que eu queria / ter apenas un coeur simple / e não um coração dilacerado”. Ao primeiro livro de poemas de Jorge Luis Borges (no qual ele fala de sua cidade natal depois de passar alguns anos com a família na Europa), é dedicado “sobre Fervor de Buenos Aires”, a ecoar as revisitações da autora à infância neste segmento do livro: “passeio na tarde / de um Borges / pleno de jovialidade / – rapaz itinerante / de ruas e rios, mas também / mares e mármores”. Rainer Maria Rilke, nome forte da poesia moderna, é referido desde o título deste poema:

 

a flor de Rilke

 

      para Larissa

 

A rosa quando nasceu

sentia o lado de dentro de si

e temia que o mundo fosse

apenas pétalas condensadas.

 

Quando se abriu

pôde viver a exuberância do jardim

o festejo de muitas borboletas

e insetos.

 

Vislumbrou o olho dos gatos

sentiu o toque macio do orvalho

e a mão do anjo que a colheu

para a morte.

 

“Ein jeder Engel ist schrecklich” (“todo Anjo é terrível”), diz Rilke já nos versos iniciais da “Primeira” de suas Elegias de Duíno. Seres que transitam entre o Céu e a Terra, entre a realidade positiva e a transcendente, os “Anjos” rilkeanos estão sempre a nos lembrar dos limites do humano, da efemeridade da existência. A “rosa”, símbolo clássico dessa mesma efemeridade (Ronsard, Malherbe, Francisco de Vasconcelos Coutinho), depois de seu breve apogeu, vem ser justamente colhida aqui por um deles.

Se Machado, Pessoa, Borges, Rilke, autores densos, são leituras diletas, a poesia singela de Casimiro de Abreu pode servir de bom antídoto, como no curtíssimo “descompromisso”, menos poema do que chiste, penúltimo do livro: “estava tão enjoada de coisas ‘herméticas’ e ‘profundas’ / que fui ler Casimiro de Abreu”.

E o último poema, ainda mais breve, composto de um único verso, intitulado “fim”, conclui o “Espetáculo das sensações alheias” deixando no ar pergunta enigmática e nos lembrando ainda uma vez de brevidades e finitudes: “a vida não tem cortinas?”. Se tem, como costumam ter os teatros, é perguntar também quem vem fechá-las (ao fim da vida – ou do livro).


Marcelo Sandmann – nov 2021

 


 

4 comentários:

  1. Análise densa de duas obras de uma poeta intensa, poeta "indo e voltando", como se diz na Barra do Corda que eu e ela tanto amamos! Viva o Marcelo Sandmann, viva a Luciana Martins!

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  2. Densa e perfeita análise de dois livros de uma poeta "indo e voltando" (como se diz na Barra, onde conheci a amada Luciana Martins!. Evoé, Marcelo Sandmann! Evoé, Luciana Martins!

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  3. Luciana é um icone com as palavras. Sai mesmo das cinzas e se trasnforma. Agiganta-se! Sua escrita é visceral.
    Em alguns momentos me perdi entre o crítico e a poeta, tamanha era a cumplicidade de ambos.
    Goatei muito!
    Parabéns!

    ResponderExcluir
  4. Luciana é um icone com as palavras. Sai mesmo das cinzas e se trasnforma. Agiganta-se! Sua escrita é visceral.
    Em alguns momentos me perdi entre o crítico e a poeta, tamanha era a cumplicidade de ambos.
    Goatei muito!
    Parabéns!

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