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Relendo ALQUIMISTA NA CHUVA, de Assionara Souza

 



Alquimista na Chuva, de 2017, é o último livro de Assionara Souza lançado em vida, seu primeiro livro de poesia. Nascida em Caicó, no Rio Grande do Norte, em 1969, radicada em Curitiba, a autora faleceu nesta cidade, em 21 de maio de 2018, em meio a uma trajetória literária em que se firmava como contista, com quatro livros publicados dentro do gênero: Cecília não é um Cachimbo (2005), Amanhã. Com Sorvete! (2010), Os Hábitos e os Monges (2011) e Na Rua: a Caminho do Circo (2014). Alquimista na Chuva veio dar vazão a uma faceta que estava latente em seu trabalho com a prosa. 

Não é um livro fácil, apesar da fluência da linguagem, da transparência de léxico e sintaxe. Não se trata de uma reunião de poemas distintos, mas de um único longo poema que se desdobra por cerca de 60 páginas, um poema formado de poemas, ou fragmentos poéticos. Por vezes é difícil discernir onde um segmento se encerra e outro se inicia. Não há títulos individuais, ou claras segmentações internas, ou marcações gráficas mais explícitas, para além do habitual recurso à composição em estrofes, um e outro espaçamento maior entre os versos, diferentes disposições destes no branco da página e a presença de ilustrações, assinadas por Raro de Oliveira, também responsável pelo desenho da capa. 

Abundam referências a escritores e obras literárias, sobretudo, mas também à música popular internacional, ao cinema e mesmo às artes plásticas. E parece evidente, na medida em que se avança na leitura, que muito do que compõe o texto é transposição como que direta, mas de modo fragmentário e algo cifrado, de matéria-prima colhida na própria experiência cotidiana e biográfica. Vivências, sentimentos, sensações, devaneios, reflexões pessoais misturam-se a reminiscências de leitura, audição de canções, fruição de imagens, referências a roteiros e personagens cinematográficos. Pessoas do convívio da autora também se fazem presentes. Talvez se pudesse falar em poème à clef, cuja chave estaria longe da mão do leitor. 

Muitas vezes, tem-se a impressão de se estar lendo um diário poético-existencial, com algumas folhas faltantes, outras embaralhadas, sem datação objetiva. As referências temporais, aliás, são esparsas, e é difícil decidir se os acontecimentos de que trata o poema seguem alguma cronologia. 

Na página que abre o livro (três parágrafos em prosa, de caráter introdutório), a autora dirige-se a um amigo, Antoine, com quem quer ter aulas de francês: “Assim, nós teremos aulas nos cafés, imitando Patti Smith, imitando o melhor de nós, nessa paisagem de outono para inverno. Nessa temporada infernal.” E é entre outono e inverno (e um “inverno/inferno”, na rima da canção, jogo vocabular recorrente no livro) que podemos localizar algumas das notações temporais: “desde maio / a vida desmaia / em queda / livre-se / de mim”; “olhos fechados num dia claro de sol / correção: num dia nublado de inverno / une saison”; “julho tem sido difícil na última encarnação”. 

Ao ambiente de outono-inverno, de frio e neblina, em que as folhas das árvores caem (motivo a ser considerado mais adiante), associa-se também a “chuva”, presente já desde o título: “sob a chuva / você se derrama em confissões / todo mundo e o teu coração vivo”; “meus olhos de cão / vão até a janela / a chuva desperta suspiros”; “a chuva tilinta seus níqueis no vidro”. Apesar de passagens de maior leveza, graça e mesmo ironia aqui e ali, esse clima atmosférico em que acontecem muitas das cenas impregna também o clima emocional: “enquanto disfarço minha tristeza”; “a juventude de minha alma começa a envelhecer”; “a boia do olhar lançada ao mar / marasmo / dias blues”; “o inferno de nosso descontentamento”; “não sabíamos ainda que justamente esse tédio / era o que tínhamos de mais valioso”.



Ilustração: Raro de Oliveira




















As cenas, as situações, os espaços se sucedem sem claras transições, sem conexões evidentes entre si, como que em livre associação. Por vezes, está-se no espaço doméstico: “a janela do quarto acende e apaga / clarões de relâmpagos”. Mas a rua é convite constante: “andei pela rua / (não, espera... / câmera antes / fechar a porta, / lembrar – será que fechei a porta?)”: “a porta do elevador se abre / vou pra rua”; “ando pela rua, às 19h de uma luz invernal”. O já referido café, onde se pode encontrar alguém, ou onde se lê ou eventualmente se escreve, é ambiente frequente: “enquanto leio maiakóvski num café // mais precisamente em julho / o resto todo é impreciso”; “o garoto do café tem a voz de uma senhora gorda que sofre de / crises profundas de solidão às seis da tarde / – quem nunca?”; “nunca para em casa / por aí, aos cafés / de frente para essa estação infernal”. Aliás, o café se faz presente já na epígrafe do livro, colhida em verso da compositora Joni Mitchel: “Only a phase, these dark café days”. 

A boemia noturna curitibana também é lugar visitado (assim como alguns de seus ícones literários): “desço as escadas em fuga / lá embaixo, o baixio dos boêmios sem dinheiro / dos leminskis la vie en (cir)rose”; “a noite solta no bairro boêmio / as meninas amys (why not?) winehouse / craquentinhas que o Dalton curte roer com seu melhor canino”. Ou ainda o quarto dos encontros amorosos: “quero tanto, meu bem / se você quiser, também / deitar-me contigo às três da tarde / as janelas do quarto abertas / esvoaçantes cortinas / talvez lá fora, um quintal”; “nós duas, às três da tarde / num quarto lugar-nenhum / felizbliss”; “nós duas naquele arejado quarto / uma janela aberta para um quintal”. Mas o quarto, agora de hotel, pode também ser metáfora: “meu coração não passa mesmo / de um quarto barato de hotel / daqueles que estudantes vadios / pagam seus níqueis merrecas / só pra foder às três da tarde / sem que ninguém os perturbe”. 

É de encontros variados (mas também desencontros) que se faz boa parte do livro. Pode ser com amigo ou amiga, pode ser a pessoa amada, podem ser aqueles com quem se cruza na rua, ou os inúmeros escritores e escritoras, além de outros artistas, que povoam o universo afetivo e intelectual de Assionara Souza. 

A propósito, o livro é dedicado à escritora curitibana Luci Collin. Quem sabe é ela a amiga com quem se sai para conversar nas partes iniciais do texto, como se pode inferir de passagens como estas: “então, dirigimo-nos ao local / a escritora (ela sim!) / me liga oferecendo carona / claro, / ainda mais com você! obrigada! // (...) // minha amiga escreve como nenhum outro / desses escritores homens machos pátria arcados / minha amiga escreve além // (...) // minha amiga medita / é adepta da filosofia zen / eu também / daqui a cem anos talvez // (...) // minha amiga tem dentes lindos / e sabe nomes de flores e frutos e árvores”. A propósito da amizade, num dos tantos versos de tom sentencioso que se vai encontrar, lemos o seguinte: “amigos são amantes adormecidos / brincam de tanto que as almas se adoram”. 

Se a amizade é assunto festejado, também o amor é tema recorrente. Já na página inicial em prosa, uma referência literária chama a atenção. O texto (e com ele o livro) se inicia assim: “Vamos nos lembrar de Apollinaire. De como ele se apaixonou perdidamente pela governanta da casa de uma família alemã, na Alemanha, onde o poeta foi parar, na época que tirava um troco como preceptor da pequena Gabrielle. Uma paixão não correspondida por Annie Playden – a moça que brincou com ele, que jogou com seu coração lírico de leão. Mas estamos falando aqui de um poeta, não estamos falando de alguém que cobra juros altíssimos emprestando dinheiro. Mais ainda, estamos falando de Apollinaire. Estamos falando aqui, mais precisamente, de Annie e La Chanson du Mal-Aimé (...).” E pouco adiante, em reminiscência machadiana: “(...) o mal súbito que essas formas femininas com bocas que falam e pétalas que se abrem de modo oblíquo e dissimulado causam numa mente poética dominada por dançarinas esvoaçantes e violinistas de Chagall”.

Essa relativamente extensa referência ao poeta e a um conhecido poema seu (ao menos de maneira assim clara) ocorre apenas aqui, no trecho de abertura da obra. “La Chanson du Mal-Aimé” (“A Canção do Mal-Amado”) é o poema mais extenso do livro Alcools, publicado em 1913, por Guillaume Apollinaire (1880-1918), um dos nomes fundamentais das vanguardas europeias do início do século XX. Trata-se de poema de 295 versos rimados, dispostos em quintilhas, de metro octossilábico, mas sem qualquer pontuação, o que trunca de imediato seu caráter a princípio tradicional. O poema (aliás, uma “romança”, como se lê em seu verso primeiro) mescla o registro narrativo ao lírico, numa colagem de fragmentos que teriam sido redigidos em diferentes ocasiões. O ponto de partida da escrita, e que lhe serve como elemento unificador, a despeito do caráter fragmentário e da incidência múltipla de mitos e referências literárias, seria a relação mantida pelo poeta com a jovem inglesa Annie Playden, entre 1902 e 1904, desde a convivência na Alemanha, passando pelos poucos reencontros posteriores em Londres, ao rompimento definitivo. Em carta rememorativa, o poeta dizia tratar-se de seu “primeiro amor”, “aos vinte anos”, amor que resumiu assim: “eu a amei carnalmente, mas nossos espíritos estavam longe um do outro”. 

Alquimista na chuva de forma alguma obedece ao tipo de estruturação formal do poema de Apollinaire. Os versos são livres, mesmo prosaicos (“despoetizar o verbo”, diz a autora), passando ao largo de qualquer preocupação com gênero, estrofação pré-definida, metrificação, rimas, encadeamentos acentuadamente musicais (herança simbolista de formação que Apollinaire não abandona). Mas o caráter de colagem de fragmentos, escritos em distintos momentos, onde experiência amorosa de partida se deixa permear por referências e digressões múltiplas, constitui claro elemento de ligação. Apollinaire (ou o eu lírico de seu poema) acaba por se transformar em alter ego da própria escritora.



Ilustração: Raro de Oliveira












Encontro/desencontro amoroso compõe um eixo importante que atravessa o trabalho. De cabo a rabo, ele se faz presente. Ao tratar dos espaços representados na obra, já se referiu aqui ao “quarto” em que tantos encontros se dão. Confiram-se os seguintes segmentos, logo nas primeiras páginas:

 

deixe-me explicar

é que venho sofrendo de uma anestesia lírica

here, there and everywhere

 

impossível ser feliz com o amor entalado na garganta

justamente quando me foi dado engolir o mundo

 

 

– fuja das poses fakes, funny

o mal deste amor (e desse e desse e desse)

foi ser imune à minha loucura

testei todas as munições

 

o tiro

saiu

pela culatra

 

da ausência máxima de amor

restou a dor

e flores murchas

num vaso de vidro

ainda que perfeitamente vivas

                                    coloridas

                                    desejáveis

 


Um pouco mais adiante:

 

vamos fechar os olhos num beijo?

se tem uma coisa que me deixa lúcida

é enlouquecer de amor

 

o amor, esse bandido nômade

nos fazendo flutuar com olhos febris

essa bomba no ventre

a flor examinada no microscópio

não se diferencia em nada de estrelas

onde está o último amor agora?

o que foi o último e devastador amor

o que de tão incerto, impronunciável

 


E “essa bomba no ventre” assume contornos bem físicos:

 

todas as palavras nascem no corpo 

expelidas para fora

tombam no rosto do outro

nos braços

(...)

 

teu corpo

contemplo

devagar, antes da boca

devagar, antes das mãos

bem devagar, o cheiro invadindo a alma

perdoa a minha urgência em ir devagar

meu desejo é esse ser cheio de pernas

correndo em tua direção

agora eu sei sentir com o corpo      

 

Num trecho logo adiante, a pessoa que se ama surge capturada entre o olhar objetivo e os devaneios da fantasia, em múltiplos instantâneos sobrepostos, lance metapoético (“editar: recortar: colar”) que explicita alguns dos recursos utilizados pela autora:

 

você do outro lado da rua

e a rua um rio feito fluxo

minha, a margem urgente

torrente

escombros dizimados de passados

deslizando pela enxurrada

tua margem, calçada de bar

a menina de lá

acena e sorri

um frame lisérgico

fotografar tua imagem

editar: recortar: colar

cenário límpido

[eu te levaria para o terraço de um prédio alto

as pessoinhas pequenas lá de longe: e nós

eu te levaria para uma praia deserta

o mar violento se agigantando: e nós]

teu navio aportando

o lenço esvoaçante no pescoço

dessa margem

água límpida corrente

barquinhos coloridos de papel

flutuando

a mão de criança organiza a fragata

navios soltos nas águas de teus dias

the girl with kaleidoscope eyes

 

A par dos encontros com amigos ou amores, os encontros com escritores (ou criadores) e com a própria escrita/criação se fazem intensamente presentes. Já se destacou aqui a dedicatória do livro, a Luci Collin, a epígrafe com verso de Joni Mitchell e a referência feita na primeira página a Apollinaire e “La Chanson du Mal-Aimé”. Canções dos Beatles surgem de passagem em alguns dos versos atrás transcritos: “here, there and everywhere”, “the girl with kaleidoscope eyes”. A escritora passeia à vontade entre canções pop e a literatura mais sofisticada.

Um poema de E. E. Cummings e outro de Ezra Pound são reproduzidos na língua original. Diversos trechos de Vladimir Maiakóvski, traduzidos por Wellington Müller Bujokas (como se lê em nota), aparecem em meio a passagens de autoria própria. A escritora Hilda Hilst recebe especial atenção: “hilda, queridíssima, / você que ouvia mortos naquela aparelhagem acústica / não me venha dizer que morreu / pois é a mais viva de todas / (...)”. Os amores da freira portuguesa Sóror Mariana Alcoforado (1640-1723), a quem se atribui a autoria das Cartas Portuguesas, são evocados: “(...) / monja do convento da conceição / isenta de inclinação mística / possessa de inclinação lírica / tal qual Hilda”. Outras escritoras são lembradas: Katherine Mansfield, Virgina Woolf, Clarice Lispector, Sylvia Plath, Gertrude Stein. Escritores vários são nomeados ou aludidos: Jacques Prévert, Cesário Verde, Arthur Rimbaud, Caio Fernando Abreu, Eugênio Andrade, Julio Cortázar, Wally Salomão, J. D. Salinger, Walt Whitman, Jorge Luis Borges, Stéphane Mallarmé, Manuel Bandeira, Herberto Helder, Lewis Carroll (cujo Alice no País das Maravilhas é recorrentemente referido) etc. A estes, somam-se também nomes importantes da literatura curitibana: Dalton Trevisan e Paulo Leminski, como se viu, mas também Manoel Carlos Karam, Jamil Snege, Wilson Bueno.

A música é outro universo presente. Já se mencionou Joni Mitchell, Patti Smith, Amy Winehouse e os Beatles, a que se poderia acrescentar Chet Baker, Lou Reed, Björk, entre outros. O cinema oferece igualmente elementos: Jules et Jim, de François Truffaut; A dupla vida de Veronique, de Krzysztof Kieslowski; Thelma & Louise, de Ridley Scott; Muljoland drive, de David Lynch; Betty Blue, de Jean-Jacques Beinex. Também as artes plásticas: Marc Chagall, Henri Matisse, Camille Claudel e seus amores com Auguste Rodin etc. Há uma malha cerrada de referências e intertextos, cuja pertinência, no que toca à composição do livro, análise de mais amplo fôlego poderia explicitar. Trata-se, de qualquer modo, da construção de um universo mitológico-literário pessoal, conversas íntimas que a autora estabelece com criadores que lhe são caros, encontros também no plano do imaginário, para além daqueles no âmbito do amor e da amizade (posto que em conexão com eles).


Ilustração: Raro de Oliveira


Outro ponto ainda a ser considerado são as digressões que tratam da literatura e da própria escrita, que são várias. Por exemplo:

 

a poesia me alegra

                   ma non tropo

 

                   a poesia

                   me contenta

                   me embala

                   me arrebenta com seus miasmas

                   a poesia me ama

cumpre o seu propósito

                   carma atropelado nas estraçalhadas linhas

a poesia sempre me quis

                   me kiss

a poesia sempre me

                   kills me

desde a tensa idade

 


Ou ainda:

 

despoetizar o verbo

toda essa história é verdade

e pode ser comprovada num belo livro de ficção

capa dourada

 


E ainda outra passagem, também jogando com os limites entre realidade e ficção:

 

as ficções distraem

mas nada supera o rascunho sujo da realidade

é para lá que todas as ficções apontam

o mar absurdo de homero

 


A “alquimia” de transformar o “rascunho sujo da realidade” em “ficção” (ou “autoficção”) é o que constitui Alquimista na Chuva, se quisermos voltar ao título e nele projetar sentidos.

À “chuva” (e à atmosfera geral que ela deixa entrever) já se referiu mais atrás. A chuva que cai, as folhas que caem, nesses meses entre outono e inverno, tão característicos da cidade em que a autora escolheu viver, estão presentes no cenário em que a “alquimista” transita. Tempos e espaços, íntimos ou objetivos, encontram-se imbricados.

A propósito, conhecido poema visual de E. E. Cummings, no qual paisagem externa e vivência interna se conjugam, é transcrito já nas primeiras páginas, e acaba por ser retomado ao final do livro:

 

 

l(a

le

af

fa

ll

 

s)

one

l

iness

 

 

A solidão (lonelinessl one l iness) da folha que se desprega do galho (a leaf falls) é motivo que retorna nos versos conclusivos, mas agora em outra chave, depois que a solidão inicial terá cedido espaço aos tantos encontros/desencontros, sem de todo desaparecer. Vale, para concluir, transcrever os derradeiros versos e deixar que eles falem (falling) e calem por si:

 

 

                            a urgência calma

aproximar-se do território do outro

                            continentes à deriva

                            guerras à flor da pele

                            refugiados de meu paíscorpo

                            atravessam a fronteira do teu corpaís

 

de onde estou

avisto

quem me vê

                            caímos, então, em suave queda

                            f

                                   a

                                          l

                                                 l

                                                        i

                                                               n

                                                                      g

 

 

 

 

 

 

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