Lapidar, dilapidar: algumas palavras sobre a poesia de Luciana Martins (3ª parte)

 



Impropérios 

O quarto livro de Luciana Martins, Impropérios, realiza uma grande guinada em relação aos livros anteriores. Nestes, como se viu, mesmo diferentes entre si, a temática girava toda ela em torno de experiências mais imediatas do sujeito: relações amorosas, impasses existenciais, dores emocionais e físicas, memórias de infância e juventude, tudo em meio a conversas com a literatura, o teatro, o cinema. Impropérios, por sua vez, se volta para o crítico momento vivido no Brasil nos últimos anos nos âmbitos social e político. Os poemas se encontram em sua maioria datados e chama a atenção a grande quantidade de textos escritos/reescritos ao longo do ano de 2019. A reação indignada e vigorosa ao primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, e tudo o que ele representa, catalisou as energias criativas da autora. Poemas concebidos anos antes (em visível menor quantidade) acabaram se integrando àqueles escritos com o claro intuito de marcar posição. 

“Impropério”, num sentido primeiro, é “ofensa”, “ultraje”, “insulto” lançado contra alguém. Em outra acepção, é “censura injuriosa”, “repreensão”. O Dicionário Houaiss indica ainda um significado específico para a palavra quando no plural, “impropérios”: “no ofício da Sexta-Feira Santa, queixas dirigidas à humanidade, representada pelos judeus bíblicos, postas nos lábios de Jesus.” 

Se os poemas são “impropérios”, seriam assim a partir de visão conservadora do que seja o poético, que reservaria ainda a ele, e dele esperaria, algum tipo de elevação, profundidade, distinção. Seriam ofensivos ou ultrajantes para quem pretendesse da poesia e da linguagem que a conforma exclusivamente experiência espiritualizante e enobrecedora, deslocada do bruto da vida. Ou para quem simpatizasse com as realidades por eles postas em causa (o que é difícil de imaginar entre leitores de poesia). Na verdade, estes poemas de Luciana Martins, menos do que “impropérios”, podem ser vistos como reações a “impropérios”, vindos de diferentes instâncias, que incidem sobre a sensibilidade da autora, que a eles reage. 

Seja qual for o sentido que se queira sublinhar, e a que o termo se aplica (se aos textos do livro ou aos discursos que eles procuram confrontar), os poemas se manifestam de forma violenta, rebatendo violência de partida. Luciana Martins batizou seu primeiro livro com a locução “lapidação da aurora”, expressão que dava nome também a um poema, como se viu. Burilar o dia que nasce, cheio de vida e esperança, acolher o momento renovador, era o intuito da escritora naqueles texto e contexto. A propósito, tratava-se do último poema do livro, portanto programático em relação ao devir. Em Impropérios, o que se vai ter, em contrapartida (para jogar com a expressão), é outra “lapidação”, agora “apedrejamento” (sentido que o termo também pode ter), ou “dilapidação”, mas não da “aurora”, e sim do “ocaso” (igualmente em sentido simbólico): é à demolição, à destruição de um presente nefasto, e aos atos e discursos que o sustentam, vividos como momento crepuscular, que o livro vai se dedicar. Trata-se de um vigoroso golpe (a saber se efetivo) contra o Patriarcado de Pindorama (evoé, Oswald de Andrade!). 

Impropérios traz em sua abertura epígrafe da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol: “A minha escrita nasce quase sempre de uma revolta”. Divide-se em três partes, individualmente coesas, interligadas entre si: “I. Vadia na Putaria”, “II. A Arte da Guerra” e “III. Roman à Clef”. O número de poemas varia de parte para parte, sendo a mais extensa a terceira. Cada uma delas, por sua vez, traz epígrafe própria, sempre de alguma escritora: Ana Cristina César, Clarice Lispector, Bruna Mitrano. 

O livro, com suas duzentas e poucas páginas, é significativamente mais extenso que os anteriores. Além dos textos, traz capa e ilustrações da filha Amanda Guerrero, que havia colaborado em Lyrica 75mg, como se viu. Na capa, de coloração variada, vemos desenho representando a escritora, sentada no chão, com lápis ou caneta na mão, cercada por uma série de rostos. De sua boca sai uma espécie de nuvem, não de fumaça, eventualmente de “impropérios”, palavra grafada justamente dentro da nuvem, abaixo da qual lemos o nome da autora. Na contracapa, aparecem três figuras femininas, entre elas uma transexual, que projetam diante de si três máscaras (um demônio, uma onça pintada e um feiticeiro africano). Tais figuras, explicitamente nuas e executando coreografia ritual, saem de dentro de uma fogueira e confrontam duas outras: um guerreiro medieval, com armadura, lança e coroa dourada, caído no chão; e um monge, ou sábio, ou velho venerando, com seu cajado, manto e capuz, e que procura se defender com as mãos. São dois arquétipos do masculino. 

Como se disse, a grande maioria dos poemas (alguns bastante longos, em meio a outros concisos, de caráter epigramático) vem datada, muitos ainda com notas que informam circunstância e/ou local de redação. As datas apontam não só o momento original de criação, mas também as tantas vezes em que cada texto foi revisto pela autora. Por exemplo, o primeiro poema, “mulher fenomenal”, traz a seguinte nota ao seu final: “pensando em maya angelou no ônibus em 03.11.2015 / retocado em 29.05.16, em 03.01.2017, em 07.02.2017, em 30.05.2017 / em 30.06.2018, em 17.07.2018 / em 24.05.2019, em 06.06.2019, em 21.06.2019, em 30.11.2019 / em 1º.12.2019 concluído em – ? – ? ...?”. Além de revelar a obsessão com a reescrita ao longo do tempo, as notas explicitam a inscrição dos poemas dentro de um dado tempo. Os textos se querem crônica do vivido, menos de vivência pessoal, mais de vivência coletiva, ou de um pessoal cada vez mais atravessado pelo coletivo e que a ele se reporta para entender a si mesmo. 

Na primeira parte, “Vadia na Putaria”, e de forma provocativa, foca-se a situação da mulher na sociedade brasileira, em diversas circunstâncias, especialmente como vítima de violência. 

O primeiro, “mulher fenomenal”, há pouco referido, é explícito já desde a abertura: “sorria / você está sendo / estuprada // sorria / você está sendo / assassinada // pelo teu ex / pelo teu marido pastor / pelos amiguinhos boyzinhos do teu irmão / pelos filhinhos de papai / pelos cidadãos de bem de nosso país”. Parodiando aquele aviso que se lê nas paredes de alguns estabelecimentos comerciais (“Sorria! Você está sendo filmado”), a autora abole metáforas e não mede palavras. Na sequência de tal introito, lemos uma lista de nomes e sobrenomes de mulheres (quarenta e seis precisamente), em ordem alfabética, desde aquelas que se conhece do noticiário policial (Cláudia Lessin Rodrigues, Eliza Silva Salmúdio), a figuras midiáticas (Fernanda Maria Young, Luíza “Brunet” Botelho de Oliveira), a personagem de Machado de Assis (Maria Capitolina de Pádua Santiago – a Capitu, de Dom Casmurro), ou ainda outras menos conhecidas, cuja identificação demanda pesquisa. O poema segue elencando diversos casos de estupro, tortura e feminicídio, pontuados por versos que compõem sarcástico refrão: “enquanto isso / exercite a panturrilha / mulher maravilha”. São sete páginas de horror explícito, que todos reconhecemos, mas que causa especial incômodo num livro de poemas, como se pudéssemos talvez melhor suportá-lo quando veiculado por certos registros discursivos (reportagem, estudo sociológico, manifesto político), mas ao qual resistíssemos quando transformado em poesia. 

O poema de abertura dá o tom de todo o livro e circunscreve, de imediato, os assuntos da primeira parte. O estupro nele tematizado, tangenciando agora incesto e pedofilia, é também assunto do homônimo “estupro”, que se lê mais adiante: “o pai abusava dela / e da irmã mais nova // pra proteger a irmã ela o ‘seduzia’ quando este obrigava a menorzinha a tocar em seu membro para masturbá-lo // (...) // a tatuagem Deus é fiel / estava desde sempre naquele braço que tanto a esganava / e arrancava sua calcinha / quando a mãe saía para o trabalho // (...) // ela tinha seis anos na primeira vez” (“estupro”). 

A questão do aborto, correlata ao estupro, é tema insistente. Leia-se, por exemplo, “política pública”: “a damares alves / ministra da mulher da família e dos direitos humanos / quer salvar / quer proteger / o bebê / na barriga da mamãe / que foi estuprada”, a fim de garantir “que o estuprador / possa dar carinho / ao filhinho”. Na sequência, poema intitulado “abortivo” surpreende “a médica da família” que aceitou fazer curetagem em paciente “e achou todos os comprimidos / lá – intactos – / boiando junto / com o pequeno / feto”. Logo em seguida, “poema-estupro”, um epigrama, complementa os anteriores e dá ao tema a sua devida dimensão política: “o corpo é meu / o feto é meu // – a lei é dos homens”. Mais adiante, “semblante” reelabora experiência pessoal: “na clínica de aborto clandestino em goiânia / pela 2ª vez em menos / de 12 meses // no quarto de espera / a enfermeira me reconheceu (...)”. 

O reconhecimento de vozes femininas precursoras, na militância política e na literatura (as epígrafes do livro e de cada uma das três partes já são indício disso) vem assinalado em poema específico:

  

women’s liberation

 

as corajosas

ana cristina (com “coceira no hímen”)

e sylvia plath (guardando meleca embaixo da carteira)

vieram

– com as betty friedan do feminismo do fim da década de 60

– queimar

                   versos

em praça pública

para que agora pudéssemos fazer poesia

         de peito aberto

         (mas com sutiã para quem quiser é claro)

 

                                               around 2013/concluído em 2.08.2019

 

 Se vozes e figuras femininas são motivo de deferência, frases ou versos de conhecidos autores homens são ponto de partida para paródias irreverentes, à maneira de poemas-piada, alguns adentrando o âmbito da sexualidade, sem papas na língua. À celebre formulação de Lobato, “um país se faz com homens e livros”, a poeta responde: “os homens a gente come / os livros a gente lê” (poema “monteiro lobato revisitado por uma mulher moderna”). Versos de Vinicius de Moraes, do poema “Enjoadinho” (“Filhos... Filhos? / Melhor não tê-los!”), surgem relidos: “homens / ‘melhor não tê-los / mas se não os temos’ / como fudê-los?” (“vinícius-fêmea”). Assim como Cabral, em conhecido poema seu, poema que fecha o primeiro segmento do livro: “‘Um galo sozinho não tece uma manhã:’ / – ele precisará sempre de uma galinha” (“feminismo poético cabralino”). São versos escrachados e ligeiros, de humor que pode não fazer rir, e que servem de contraponto ao clima pesado de outros poemas. 

Ainda nesta primeira parte, chamam a atenção aqueles textos em que a poeta procura se definir, ou então caracterizar os recentes caminhos de sua escrita. A expressão “ecce homo” (as célebres palavras de Pôncio Pilatos referindo-se a Cristo antes da Crucifixão, retomadas por Friedrich Nietzsche como nome de livro seu) inspira o título de dois poemas, ambos designados “ecce femina”. No primeiro, Luciana Martins explicita sua natureza: “sou uma sujeita / uma sujeitinha lírica / que não se sujeita”. Nos versos iniciais do outro, lê-se: “sou impertinente / – insubmissa mesmo – / não lambo botas / tenho prazer em descumprir ordens / emitidas / por gente incompetente // (...)”. “Poética” define as balizas entre as quais a autora se movimenta: “menestrela / que ministra / poemas sob estrelas // barda que bombardeia / os explosivos – versos”. A propósito de inusitadas flexões de palavras que costumam ocorrer no masculino (como as pouco usuais “menestrela” e “barda”), dois poemas ironizam o feminino algo serôdio do masculino “poeta”, posto que ainda em voga em alguns círculos. Trata-se de “poetisa” e “poetisa 2”, no primeiro do qual se pode ler: “põe brisa / poetísica / põe e alisa / quem te pisa // és esposa do poeta? / embaixatriz por um triz? / – esse o temor de cecília meireles // ‘serás marquesa’ / se o poeta for marquês? // (...)” (“poetisa”). 

Para fechar a abordagem de “Vadia na Putaria”, reproduzo poema escrito a partir de matéria autobiográfica, devastador em seu intuito, e que exemplifica bem a síntese entre experiência pessoal e coletiva que, como se disse, é a nota distintiva deste livro:

 

 orientação de tese heteronormativa

 

         1

 

nos tempos do doutorado na usp:

por favor eu te peço

me dê mais um prazo

tem misericórdia de mim

 

ora

desiste do doutorado

minha mulher desistiu

 

         2

 

         nossa!

lulu

foi um parto esta tese

né?

exclama o amigo

 

não foi um parto

foi um aborto

diz o orientador

 

                                               29.06.2019

 

 A segunda parte, “A Arte da Guerra”, captura violências e injustiças diversas. 

O primeiro poema, “camiseta do ciep operário ensanguentada”, opera a partir de matéria colhida no noticiário, reproduzindo falas de pessoas envolvidas. Aqui, Luciana Martins utiliza recurso que se fará cada vez mais presente no livro (cut-copy-and-paste), capturando fatos e discursos que chegam pelos jornais impressos e televisivos, pela internet, ou conversas ouvidas/vistas em casa, na rua ou nas redes sociais, apropriados e reelaborados, por vezes de forma bruta, por vezes com maior retrabalho. Confiram-se os versos iniciais do poema em questão: “mãe eu tomei um tiro // eu sei quem atirou em mim eu vi foi o blindado // ele não me viu com a roupa de escola mãe? // a culpa é desse estado doente que está matando as nossas crianças com roupa de escola / estão segurando mochila e caderno não é arma não é faca // a bala estragou tudo dentro dele / a única coisa que ficou foi a pressãozinha dele / que foi caindo até ele chegar a óbito (...)”. Ao pé da página, ampla nota (de que se reproduz aqui fragmento) contextualiza o ocorrido: “em 20 de junho de 2018, o exército brasileiro e a polícia civil do rio de janeiro fizeram uma operação no complexo da maré com 2 caveirões e 1 helicóptero que dava voos rasantes atirando contra a comunidade (...)”. 

Em outro poema, “samba do crioulo doido (???)” o recurso se repete, agora com diversos flashes, trazendo ocorrências várias, com destaque para o envolvimento da população pobre e negra: “mais de 2 mil pessoas acamparam em frente a supermercado / na samambaia em busca de uma das 180 vagas abertas no dia 26.06 / – vendo as fotos e assistindo na tv todas as reportagens locais / sobre o assunto / é possível afirmar a olho nu que / 98% são negras e negros // em copacabana / a gente (embranquecida) / tem de andar olhando pro chão / pra não topar / em pessoas caídas / combalidas / todas negras // (....) // de 3 em 3 meses eles sobem na comunidade / pra fazer isso daí: CHA / CI / NA / eles riem na cara da população // (...) // (detalhe: se apossaram dos celulares das vítimas / e enviaram emojis de caixão e caveiras / em resposta a quem perguntava se tava tudo bem) // (...) // conclusão do ipm-inquérito policial militar (em outubro): / ‘ausência de crime ou transgressão / por parte dos policiais militares envolvidos no caso’ (...)”. 

Outros assuntos candentes do noticiário adentram igualmente o livro. A catástrofe ambiental de Brumadinho, em Minas Gerais, em janeiro de 2019, é o assunto de “anti-lira itabirana”. Nele, são reproduzidos depoimentos de diversas testemunhas e sobreviventes, pontuados por fala do presidente da companhia de mineração responsável pela tragédia, em entrevista dada aos jornais, e que funciona também como refrão dentro do poema: “a vale é uma jóia brasileira”. Os métodos de investigação da Operação Lava Jato são assunto do poema “corte do pequeno inquisidor da polícia política”: “as sessões gravadas de delações da lava-jato / são as novas representantes dos / inquéritos da santa inquisição (...)”. Depoimentos vazados de Fabrício Queiroz, figura controversa ligada ao presidente da República e sua família, servem de matéria-prima para “quem indica (qi)”: “tem mais de 500 cargo lá – cara! / na câmara do senado // (...) // – porra é só chegar: / mermão / nomeia fulano / pra trabalhar contigo aí / [som de narrador de jogo de futebol gritando gooooool] (...)” Os episódios de escândalo sexual envolvendo o médium e curandeiro João Teixeira de Faria, mais conhecido como João de Deus, são assunto de “viva o ateísmo ii” (o segundo de uma série de três poemas): “o joão de deus (joão do diabo) estuprava / as mulheres numa / sala privada // eram adultas adolescentes crianças / ‘calma fique tranquila / porque seu pai vai ser curado’ / – dizia para duas irmãs / que abusou alternadamente (...)”. 

Destaco ainda um poema deste segmento, datado de momento muito anterior, ainda da juventude da escritora, que contrasta com os demais, mas que a eles se integra na medida em que vem se somar àqueles textos de autodefinição dispersos pelo livro, e que ajudam a entender o ponto de onde Luciana Martins olha o mundo:

  

esquerda festiva

 

minha primeira professora

me forçava a escrever

com a mão direita

 

não conseguiu

 

até hoje luto

contra a corrupção

que há em se ser destra

 

                                               15.05.1982

 

A terceira parte se intitula “Roman à Clef”. Tal expressão em francês, que se poderia traduzir de forma literal por “romance com chave”, designa aquelas obras narrativas que lançam mão de personagens com nomes fictícios para tratar de pessoas e acontecimentos reais. Só os leitores que possuem a “chave” seriam capazes de estabelecer a conexão entre ficcional e não-ficicional, decifrando o que estaria por detrás da narrativa (“abrindo”, assim, sentidos “fechados”). A autora utiliza tal expressão de forma irônica, pois não se trata aqui de romance, evidentemente, nem “romance com chave”, já que as situações são de amplo conhecimento de todos e as personagens (todas infelizmente reais) são quase sempre explicitamente mencionadas (e quando não são, fica sempre óbvia sua identidade). 

O poema de abertura, “ludovika wittgenstein”, é importante para entender o intuito da poeta. Partindo de formulação conhecida do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, “wovon man nicht sprechen kann / darüber muss man schweigen” (“do que não se pode falar, sobre isso se deve calar”, em tradução aproximada), a autora subverte seu sentido. Atribui tal operação, de forma zombeteira, a autoria feminina (Ludovika seria o equivalente feminino do masculino Ludwig), riscando a segunda parte da expressão, para então retificá-la no dístico final: “sobre aquilo de que não se pode falar / deve-se poetizar”. E “aquilo que não se pode falar”, por ato de censura ou auto-censura, vai ser (se “poetizado” é vocábulo que de fato cabe aqui) escancaradamente dito. 

O primeiro texto a seguir, “‘ode’ ao presidente ‘mito’-neonazi”, elenca uma série de frases polêmicas, muito divulgadas, do Presidente da República, já desde seus anos de atuação na Câmara dos Deputados em Brasília até momentos mais recentes como candidato e depois líder da nação: “olha jamais eu ia estuprar você que cê não merece / você é uma imoral tá vagabunda / chora agora chora agora vagabunda / ah vai dizer agora que você é uma coitada agora? / (...) / o brasil não pode se transformar na casa da mãe joana / o erro da ditadura militar foi torturar e não matar / (...) / eu sou favorável à tortura tu sabe disso / sou anti-democrata com muito orgulho / só vai mudar quando partirmos pra uma guerra civil aqui dentro / fazendo o trabalho que o regime militar não fez / (...)”. E por aí vai. Por vezes, a autora acrescenta formulação própria em meio à citação: “meus ídolos / dentre outros da mesma laia / são o torturador carlos alberto ustra / e o narcotraficante pedófilo estuprador alfredo stroessner / (...) / michelle minha primeira-dama vc é tão cristã / veja só como trata a vovozinha / maria aparecida que mora no sol nascente”. 

A história transformada em mito é matéria-prima de epopeias. Mas Luciana Martins não é poeta de fôlego épico, muito menos os assuntos que canta teriam altura para tanto. Quando muito, é autora de epílios (composições de assunto épico de breves dimensões), a partir de história e mito degradados, paródias de matéria épica, portanto. Dois textos assim intitulados encontram-se neste segmento do livro (e não é a “cólera de Aquiles Pelida” o que ela vai cantar), o segundo dos quais começa assim: “canta musa / a cólera de bolsonaro / contra a esquerda / contra o socialismo / contra a cor vermelha da bandeira / contra as leis de trânsito / contra a ancine / contra a libido / contra os professores / contra a imprensa / contra o serviço público / contras as ongs / contra as florestas / (‘a porra da árvore’) / contra isso aquilo e aquilo outro // canta musa / a cólera de wilson witzel / de sua metralhadora e de seus snipers / contra a população negra // canta musa / as teorias e perseguições / do astrólogo vagabundo / olavo de carvalho // (...)” (epílio II). 

Todo um inventário de hipocrisias, desmandos e catástrofes vai sendo abrigado no livro. Revisitamos a história recente, que não precisa se repetir como farsa, pois ela parece, já desde sempre, ocorrer como farsa (farsa contraditoriamente trágica, diga-se). É, assim, a reiteração da própria farsa o que o leitor experimenta nos poemas. Não há espaço aqui para inventariar todo esse amplo “inventário”, mas alguns lances merecem ainda destaque. 

Por exemplo, as ações do governador do distrito federal e suas imbricações com a justiça: “o famigerado inganeis (ops) rocha / atual governador do df // em 2014 declarou sobre um dos assassinos / do índio galdino / de quem foi advogado para que assumisse o cargo de / polícia civil // : ele pode levar uma vida normal (...) (“ibaneis advocacia e consultoria”). 

Ou os reflexos das diretrizes dos altos escalões no ensino: “ernesto araújo ministro das relações exteriores do brasil / diz aos quatro ventos que o nazismo é um movimento de / esquerda / her führer repete (‘tem ‘socialista’ na sigla’) // o aluno pergunta isso à professora / que leva bronca do coordenador da série / por ousar falar no assunto // (...) // prova com texto de gregório duvivier / foi anulada / no colégio loyola de bh / a pedido de alguns pais // (...) // no colégio da polícia militar 1 em manaus-am / professor de português foi estapeado / encurralado / trancado numa sala / com a arma apontada para sua cabeça / e xingado de ‘professor de merda’ / pelo tenente-coronel diretor e seus asseclas (...)  (“educação moral e cívica”). 

Ou as relações entre política, imprensa e futebol: “bozo mais paulo tchutchuca (ou melhor paulo tigrão) guedes / e grande elenco / foram ao mineirão / assistir o jogo entre brasil e argentina / bozo desfilou no intervalo e levou vaia / mas a globo de desgovernos velha caftina / não mostrou /  – não sei por que o bozo implica com a rede / tão-querida-dele globo – // (...) // cafú e neymar lamberam as botas até ficar com /  a língua engraxada (...)” (“juiz ladrão”). 

Ou ainda as ameaças e censuras que atingem vozes contrárias: “manifestantes com placas do tipo ‘ - onu + família’ / aos gritos chamando a pensadora judith butler / de bruxa / foram para a porta do sesc pompeia / no dia 7.11.2017 / protestar contra a sua palestra de abertura do seminário / os fins da democracia / queimando boneco com seu rosto / ao som do pai-nosso / (...) // saída do país da antropóloga débora diniz / que defende direitos reprodutivos da mulher / saída do país do político de esquerda jean wyllys / saída do país da filósofa marcia tiburi / – gravemente ameçados de morte // (...) // transformação do coaf em uif / desmonte da embrapa / desmantelamento do ibama / suspensão do fundo-amazônia / censura e descaso com os dados do inpe sobre desmatamento / e posterior exoneração (à força) de seu presidente (...)” (“fahrenheit 451”). Ao final do poema, em chave auto-reflexiva, citação em itálico (extraída do capítulo XLV de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis) comenta os expedientes composicionais deste e de outros textos: “Isto que parece um simples inventário, eram notas / que eu havia tomado para um capítulo triste e vulgar / que não escrevo”. 

Também metaliterário, merece registro um último poema, já entre aqueles que concluem o livro, que justapõe citações de modo improvável e brinca com clichês:

 

 advertência

 

 presque-fini senhoras leitoras senhores leitores!!!

 

esta é uma obra de ficção

qualquer semelhança

com nomes pessoas factos ou situações

da vida real

terá sido mera coincidência

 

                   silvio santos vem aí... lá lá... lá lá lá lá

 

pronto! falei

 

“E mais não digo, porque a Musa topa

Em apa, epa, ipa, opa, upa.”

 

                   este poema “se autodestruirá

                   em cinco segundos”

 

Concluído o trabalho, uma extensa dedicatória – introduzida com a formulação: “esses poemas-impropérios gestados nas coxas / (como zeus gestou dionísio) dedico para”... – desdobra-se ao longo de 30 páginas, elencando grande quantidade de nomes de amigos e figuras do cenário cultural. É como se lêssemos aqui também um apelo a todo um coletivo, não só ao qual a obra se dirige, mas com o qual ela estabelece vínculos de fraternidade e compromisso. 

A poesia brasileira tem vivido, nos últimos anos (e penso sobretudo na poesia “letrada”, na poesia “de livro”), uma crescente incursão pelo engajamento político e social, como desde a década de 1960 talvez não mais tivéssemos visto. Ela responde, assim, de diferentes modos e com seus limitados recursos, às demandas do presente, seja em obras individuais, seja em obras coletivas. Lembro, neste último caso, de antologias como 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015), ou Ato poético: poemas pela democracia (Oficina Raquel, 2020), para citar apenas dois exemplos. Luciana Martins, nestes seus Impropérios, soma sua voz a essas vozes coletivas.        

Mas, glosando o filósofo: é possível ainda “lírica” em tempos de Bolsonaro? Lírica, como a que vimos em seus primeiros livros, a autora parece dizer que não. Ao menos por enquanto. 

 

 

Marcelo Sandmann – jan/fev 2022

 

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