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“E este nada, querida, é tudo o que temos”: uma leitura de RISCA FACA, de Ademir Assunção

             

“Risca faca” é expressão popular. Na iminência de uma briga, indica o ato de sacar uma faca e riscar com ela o chão, marcando um limite, intimidando assim o inimigo ou provocando-o a que avance e chegue às vias de fato. Desse sentido primeiro, passou a um segundo: “risca-faca” é o bar, o salão de baile, a casa noturna – de reputação duvidosa para certos padrões – , onde, no calor da bebida e no adiantado da hora, podem ocorrer brigas, por vezes fatais. Riscar a faca em uma pedra, ou em outra faca, é também modo de afiá-la.

Risca Faca, de Ademir Assunção, é livro de gume aguçado. Traz poemas de corte incisivo, de um autor pronto para a briga e que sabe reconhecer e enfrentar seus inimigos. Em tempos de guerra, como estes em que vivemos, é preciso estar atento, marcar território, de armas na mão. E as armas do poeta, como se sabe, são suas palavras.

O livro se divide em cinco partes, cada qual com aspectos formais e temáticos específicos, mas conectadas entre si.

 

1.

A primeira parte se intitula “Sangue Verso Água Brasa” e reúne poemas em que o autor discorre sobre a poesia, sua condição de poeta e de sujeito no mundo. As quatro palavras soltas do título são indicativas desses assuntos e do modo de abordá-los. “Sangue”/“Verso” (onde se pode entrever a conhecida locução “vida e arte”) indica a articulação entre poeta/poema, sujeito/texto, assim como “Água”/“Brasa” sugere o modo antitético de enquadrar as questões (antíteses, contraposições, paradoxos são frequentes no livro). “Sangue” (recorrendo-se a metáforas) é “água em brasa”, assim como “verso” é “palavra acesa que flui”. 

O poema de abertura, “Máquina Pensante”, fala da poesia, fala do poeta, da permanência da poesia para além do próprio poeta: “um poema que se pensa / a si mesmo, como eu penso nele / neste momento // organismo vivo pensante / moto-contínuo em pleno funcionamento / quando quem o pensou // já não esteja mais aqui”. Ao tentar defini-lo, lança-se mão de formulações antitéticas: o poema é “algo do tamanho de um grilo”, mas também “som mais forte que o grito”; é “lógica, mágica e delírio”, onde “lógica” atrita com “mágica”, o que por sua vez provoca o “delírio”. Mas, por detrás das contraposições, surgem elementos de ligação no próprio corpo das palavras: nas aliterações e rimas toantes (“grilo”/”grito”); nas ressonâncias da rima interna com modulação vocálica (“lógica”/”mágica”). Ademir Assunção é hábil na exploração das sonoridades. E assim, nas palavras do poema, a possibilidade da duração: “nada sobrevive // além do além da poesia”. 

Os poemas seguintes desvelam o sujeito que escreve e sua condição problemática, muitos deles atravessados de paradoxos: “me tranquei na caverna com platão / pra enfrentar meus próprios males // (...) // chamei pra briga o capeta de facão / senti o aço perfurando a carne mole / gritei bem alto um tremendo palavrão” (“Caverna”); “já me perdi aqui e ali / e não foi uma vez só // (...) // sem replay sem tira-teima / a vida esfria às vezes queima” (“Perdidos & Achados”); “claro – sou difícil – embora simples / escuro às vezes – avesso às vésperas” (“Lírio no Limo”); “sou o que sou / e também o que não sou // soo na voz que cala / e no silêncio que fala” (“Tudo que Soul”). 

“Metamorfosis” apresenta curiosas transformações do sujeito: primeiro ele é “cavalo”, depois “égua”, finalmente “poeta”. O segmento inicial dá boa ideia do uso expressivo de aliterações, assonâncias, rimas: “agora sou um cavalo / trotando livre pelos prados // brisa nas crinas, narinas / farejando o frescor da relva, // selva que se avoluma / silvos de elfos, lumes // no limo liso das pedras, / riacho de água cristalina”. Do masculino ao feminino, da condição animal à humana, da natureza à cultura, em constante movimento, o poeta conclui: “minha loucura não tem cura”. 

A captação do contemporâneo e a reação vital a ele, que permeia boa parte do livro, também se faz presente: “Nas redes sociais troveja o berreiro // (...) // São tantas as mentiras no whatsapp / No face instagram jornal rádio tevê / Todos ouvem falar e ninguém vê / Os índios mortos na caçamba da picape” (Tô Fraco Tô Fraco Tô Fraco”).  

“Espírito do Tempo”, de dicção coloquial, sintetiza bem as reações contraditórias do poeta frente ao momento. Cansaço, prostração, desejo de morte marcam a primeira parte da composição, a que se segue a revolta e o desejo de abrir caminhos possíveis. Vale uma transcrição integral do poema:

 

 

ESPÍRITO DO TEMPO

  

às vezes bate um desânimo

uma vontade filha da puta

de esticar a corda

apertar o gatilho

ouvir o eco do estampido

tocar fogo na lona do circo

 

às vezes bate uma revolta

uma vontade dos infernos

de acender de novo o braseiro

peitar o leão-de-chácara

chutar a canela do zagueiro

jogar o capanga nas águas do niágara

 

às vezes bate um vento

e se não há caminhos

eu berro eu corro eu invento

  

Se o poeta inventa caminhos, inventa também os poemas que deixa pelos caminhos. No verso que encerra esta primeira parte (do poema “Caso o Acaso”), em meio às tensões que atravessam os textos e o sujeito que os escreve, Assunção sentencia, afirmativo: “poeta bom é poeta vivo”.

  

2. 

A segunda parte intitula-se “Zona de Confronto”, locução que brinca com expressão conhecida, “zona de conforto”. A paródia é recurso recorrente nesta parte do livro. É para o embate que parte então o poeta. Já no primeiro texto, explicita-se o propósito: o autor quer seu poema “certeiro / como um cruzado // de muhammad ali.” E os poemas-golpes passam a ser desferidos em diferentes direções. 

A marginalização sistemática a que a sociedade condena pessoas e certos fazeres surge de imediato tematizada. “Economia de Mercado” lista ampla série de bens de consumo (do “litro de leite” à “grama de cocaína”, da “garrafa de tubaína” ao “pacote de jontex”), para indagar: “(...) tudo vale alguma coisa / qual o preço de um poema?”. “Aquela Mulher sem Nome” lança olhar de empatia na direção de pedinte acompanhada dos dois filhos, “um de colo, outro de uns 4 anos”: “certamente aquela mulher sem nome / tem um nome, e foi criança, algum dia. / será que ganhou presentes de natal? / será que era coberta nas noites de frio?”. “Um Ogro na Loja de Cristais”, soneto devidamente rimado, enfoca o pária social, o que “pagou mais mico que macaco-prego”, mas que resolve reagir e se rebelar: “Cansou de ser chamado de vagabundo / Jogou no lixo as tralhas do hospício / E entrou com tudo na loja de cristais.”  

O Brasil dos últimos anos, de golpes políticos e desgovernos, é alvo de outros poemas. “Triste Brasil (Atualizando Gregório de Matos)” parodia “Triste Bahia, ó quão dessemelhante”, antológico soneto satírico do barroco baiano: “Triste Brasil! Ó quão estropiado / Estais e estou como papel cagado! // (...) // A ti trocou-te o golpe galopante, / Que deixou todo mundo bem brochado, / É tanto paneleiro agora tão calado, / Tanto beócio dócil e tanto meliante.” “Bala, Bíblia e Lábia”, outro soneto, põe em causa as mancomunações entre políticos, juízes, banqueiros, empresários e líderes religiosos (a elite brasileira, em suma): “o justo é linchado se safa o safado / juiz mais escroto que hostil justiceiro // banqueiro empresário senador fazendeiro / todos sem dó metem a mão no dinheiro / mas deixam a parte do pastor trapaceiro”. São textos diretos, como se pode ver, sem papas na língua, sem ambiguidades. O intuito combativo, em sua urgência, leva de roldão qualquer sutileza. 

Drummond, assim como Gregório, é outro poeta canônico cujos versos servem de mote para reelaborações. Em “Tanto Ódio, Carlos”, lê-se colóquio com versos conhecidos de “Mundo Grande” e “Poema de Sete Faces”, do poeta mineiro: “o mundo é grande / e tem extremos // tem estrela e tem estrume / tem perfume e tem veneno // (...) // mundo mundo vasto mundo / mundo malo mundo bueno.” “Um Idiota no Meio do Caminho” parodia “No Meio do Caminho”, e pinta um retrato devastador do líder da nação, propositadamente não nominado no poema: “não havia uma pedra no caminho / havia um idiota completo (...) / um idiota completo com seu fedor de coisa pútrida / babando bílis, bebendo pus, peidando, defecando / sobre bandeiras verdes sem matas / sobre bandeiras azuis de céus sufocantes / sobre bandeiras amarelas de raiva / sobre bandeiras brancas manchadas de sangue / um idiota completo regurgitando e resfolegando / violência, tortura, ameaças, assassinatos”. O poema se constitui como violento esconjuro, para concluir, em paradoxo: “um idiota maligno digno de pena / que nem vale o esforço de um poema”. 

No Brasil contemporâneo (no mundo contemporâneo do qual o Brasil é apenas parte), o bordão hobbesiano, “o homem é o lobo do homem”, se mostra em sua máxima verdade. O poema “Chacais e Hienas” propõe uma fábula exemplar nesse sentido, revelando um mundo em que o tempo surge como cíclico, e no qual predadores insaciáveis são os protagonistas: “a história sempre termina assim / os chacais – e também as hienas / saltam sobre o leão ferido // (...) // os chacais – e também as hienas / saciam a fome atávica de séculos / e mostram os dentes pontiagudos // mostram os dentes pontiagudos / fiapos de carne entre os caninos / e riem seu riso de escárnio e ganância // (...) // o vento crepita nos galhos secos / um silêncio – que não é paz nem trégua / se espalha pela pradaria savana cidade // a chuva não vem o sol é inclemente / a fome o escárnio a ganância persistem / e a história recomeça de novo e de novo”.

  

3. 

“Livro de Retratos” é o título da terceira parte, composta toda ela de poemas endereçados a certos nomes da história e da cultura. Muitos dos textos são homenagens, especialmente a escritores, músicos, artistas, de quem o poeta extrai exemplos de realização e conduta, ou com quem propõe alguma espécie de embate criativo. Outros (poucos) são novos esconjuros a figuras execráveis. 

Entre os escritores, nomes antigos e novos, do Brasil e do mundo: Arthur Rimbaud, Bashô, Dante Alighieri, E. E. Cummings, Manoel de Barros, Octavio Paz, Robert Creeley, Roberto Piva, Torquato Neto. Entre os músicos, nomes do blues, do jazz, do pop, da música popular brasileira: Blind Willie Johnson, Cartola, Chet Baker, Itamar Assumpção, John Lee Hooker, Miles Davis, Sade Adu. Das artes em geral, o pintor barroco italiano Caravaggio, o fotógrafo brasileiro contemporâneo Juvenal Pereira, a atriz espanhola Penélope Cruz. Da política brasileira recente, Marielle Franco, vítima da violência das milícias, símbolo de afirmação e resistência. Muhammad Ali, boxeador norte-americano, surge novamente, em poema em que a expressão que dá título ao livro se faz presente: “falo língua de negão quando perco o chão / quando o santo é forte quando risco a faca quando o sul é norte”. Da história, o colonizador espanhol Cabeza de Toro, e da história brasileira recente, alguém nomeado como “Coronel U.”, cuja identidade, já indicada no título, se explicita na descrição da cena de tortura que ocupa todo o poema. Ao final da galeria, um “Auto-Retrato”, ponto de chegada dos tantos retratos apresentados. Com exceção deste último, os demais são distribuídos em ordem alfabética, a partir da letra inicial de cada título, o que acaba por compor sequências estranhas, como esta, que a “Chet Baker” faz suceder o “Coronel U.”, seguido então por “Dante Alighieri”, seguido por sua vez por “E. E. Cummings” etc. 

Gostaria de destacar um poema, aquele dedicado ao bluesman afro-americano “Blind Willie Johnson” (1897-1945):

 

 

BLIND WILLIE JOHNSON

  

estradas cheias

de pessoas

 

riscos no asfalto

no ar, nos trilhos

 

trens lotados

carros, aeroplanos

 

lenços, lágrimas

acenos de adeus –

 

quantas histórias

bruscamente interrompidas?

 

quantos gestos

apenas esboçados?

 

quantas palavras

dissolvidas

 

antes

de lançadas ao ar?

 

quantas músicas

que ninguém ouviu?

 

sons macios

fogueiras apagadas

 

a voz rascante

de um negro cego e pobre

 

soando

no lado de fora

 

de uma pequena igreja

em beaumont

 

i want somebody

to tell me

 

answer

if you can

 

i want somebody

to tell me

 

what is

the soul of a man

 

– onde, em que espelunca,

este alguém?

 

pouco importa

agora

 

a noite estrelada

expõe

 

em sua galeria

de arte

 

berçários de galáxias

buracos negros

 

planetas girando

sóis ondulantes

 

nebulosas, asteroides

mundos abissais

 

e todo o movimento reduz

a quase nada

 

o vai-e-vem

das estradas cheias

 

e este nada,

querida

 

é tudo

o que temos

  

Como a quase totalidade dos textos desta terceira parte (as exceções são “Cabeza de Toro” e “Caravaggio”), o poema é composto apenas de dísticos, com versos muito curtos, muitos deles com apenas uma, outros com duas, três ou poucas mais palavras. Trata-se de versos quebrados, que eventualmente poderiam compor unidades maiores, versos mais extensos. Devidamente rearranjados em outros modelos de estrofação que não o dístico, dariam ao texto outro tipo de configuração e ritmo. Assim, um poema um pouco mais extenso como este (extenso para os padrões do próprio livro), que se estende por três páginas, poderia se concentrar em espaço bem mais restrito. Mas o poeta opta por este tipo de construção, cheia de cortes, enjambements, em que o texto se espicha, em que palavras ou pequeno número de palavras como que se isolam, dando ao poema um ritmo trôpego, entrecortado, numa linguagem muitas vezes rente à prosa. 

O que chama a atenção, porém, é o movimento interno geral da composição. Ao ritmo entrecortado da sintaxe e dos versos, sobrepõe-se o ritmo mais amplo das cenas e das ideias. O texto, assim, se desdobra em três tempos, a que se segue um lance conclusivo. 

Num primeiro, surgem as massas humanas em movimento pelos caminhos da América (“estradas cheias de pessoas”, “trens lotados”, “carros”, “aeroplanos”), homens cujos sentimentos íntimos, cuja história pessoal, passam como que desapercebidos, se perdem em meio ao trânsito (“histórias bruscamente interrompidas”, “gestos apenas esboçados”, “palavras dissolvidas”, “músicas que ninguém ouviu”). No segundo, entra em cena a figura singular do músico “negro cego e pobre”, de “voz rascante”, nalgum lugar da cidade de Beaumont, no Texas, onde viveu e morreu. “No lado de fora de uma pequena igreja”, nalguma “espelunca”, Blind Willie Johnson toca e canta, e no canto absorve o movimento do mundo e dos homens, a trama dos afetos, para indagar em seu blues, de modo singelo e profundo: “i want somebody / to tell me // answer / if you can // i want somebody /  to tell me // what is / the soul of a man”. Mas o que seja “a alma de um homem” é questão que fica em aberto. No terceiro tempo, ressoando a pergunta, o foco se desloca da dimensão humana para a amplidão do cosmos (“berçários de galáxias”, “buracos negros”, “planetas girando”, “sóis ondulantes”, “nebulosas”, “asteroides”, “mundos abissais”), diante do qual o que é humano (“o vai-e-vem / das estradas cheias”) parece ínfimo. Ao final, surge a conclusão em abrupto, quando o poeta, de modo surpreendente, se volta para uma interlocutora que só aparece no momento derradeiro, espécie de musa ex machina. E então, dirigindo-se a ela, sentencia, em resposta aos versos do blues (em resposta a todo o movimento do poema), em versos que também parecem blues: “e este nada / querida // é tudo / o que temos”.

  

4. 

“Fábulas Contemporâneas” é a quarta parte de Risca Faca. Aqui, o intuito crítico ainda mais se intensifica, em sátiras mordazes que não deixam pedra sobre pedra. 

Os poemas se querem “fábulas” (a palavra “fábula” aparece sempre nos títulos) e seguem todos o mesmo padrão composicional (com exceção de “Fábula do Naufrágio” e, em certa medida, “Fábula Zen”). Palavras em caixa baixa, sem pontuação, dispostas umas ao lado das outras, preenchem um espaço pré-determinado na página, delimitado a partir de margens à esquerda e à direita, que definem linhas/versos de pouco mais de 8 cm de largura cada uma, variando, porém, o número de linhas de poema para poema. Os textos ocupam em geral uma, no máximo página e meia. 

Em muitos, o recurso a construções anafóricas, repetições de locuções e palavras dá aos poemas um tom obsediante, de martelar ininterrupto de ideias. É o caso, por exemplo de “Fábula da Civilização”: “a civilização mata a civilização mata muito a / civilização mata boi mata vaca mata porco / mata salmão mata carneiro mata frango ma / ta peru mata galinha mata chester mata sí / rio mata congolês mata palestino mata iraqui / ano mata kalapalo mata paraguaio mata boli / viano mata preto mata pobre a civilização ma / ta porque precisa comer a civilização mata / porque precisa civilizar a civilização mata (...)”. 

Já “Fábula da Publicidade” envereda pelo cômico, ao elencar diferentes bordões publicitários, mas em combinações improváveis de palavras: “o mundo é dos black friday !!! mães em nove / prestações sem juros nas casas bahia !!! a / droga que você procura está na drogaria onofre / (...) / troque seu coelhinho de páscoa / por um pet castrado e vacinado !!! no pão de / açúcar é assim : a cada 20 reais você ganha / um selinho !!! / (...) / não pense nos momentos difíceis / – deixe que a funerária novo mundo pense / por você !!! cliente fidelidade tem descontos / especiais na compra de um novo namorado !!! / (...) / a amazon tem o livro de poesia que / cabe no seu bolso !!! no banco itaú você nun / ca toma no cu !!! jingle bells hô hô hô !!!” 

“Fábula de um País”, como o poeta explicita em nota, se compõe de “títulos de séries, filmes, documentários e desenhos animados encontrados na Netflix, exceto no último”. A colagem, com apenas títulos em inglês, propõe um retrato caótico e algo nonsense do país (o “united states of brazil”, como rezam as últimas palavras), em que a dominação cultural se evidencia: “the end of the fucking world mindhunter be // tter call saul dark bright godless rotten peaky / blinders comedians in cars getting coffee dis / jointed the nazis and the final solution (...)”. 

São dezoito “fábulas”, que passeiam por diferentes assuntos: “Fábula da Justiça”, “Fábula da Economia”, “Fábula do Noticiário”, “Fábula da Fé”, “Fábula da Putaria”, “Fábula do Hospício”, “Fábula do Espelho”, entre outras. Ao fim e ao cabo, tem-se um amplo painel do Brasil contemporâneo e seus descaminhos sociais, políticos, econômicos, comportamentais.

  

5. 

A quinta e última parte se intitula “Parapsicologia da Decomposição”, título provocativo que remete, de imediato, àquele de poema e livro importantes de João Cabral de Melo Neto, Psicologia da Composição, publicado em 1947. Cabral, nome fundamental da poesia moderna brasileira, retomava, por sua vez, título de ensaio de Edgar Allan Poe, “Filosofia da Composição”, publicado em 1846, em que o escritor norte-americano destrincha os processos composicionais do seu famoso poema “The Raven”. O poeta pernambucano faz da poesia instrumento de reflexão sobre a poesia, recurso frequente em seus textos e livros, propondo ali toda uma poética pessoal. Assunção segue o expediente, aprofundando reflexão também sobre sua poética, num corpo a corpo com o texto cabralino.   

O título tem muito de derrisão, mas o poema não deixa de ser uma homenagem a Cabral. Assunção atualiza o agon bloomiano, num embate com nome forte do cânone brasileiro. Recorrendo-se aqui ainda uma vez ao título do livro, o autor puxa sua faca e chama o grande poeta da “faca só lâmina” para a briga. 

Duas epígrafes secundam o título: uma do próprio João Cabral de Melo Neto, do poema com o qual Assunção dialoga, e outra da canção “A Cidade”, de outro pernambucano, o músico Chico Science, nome importante do movimento Mangue Beat (“A cidade não para / A cidade só cresce / O de cima sobre / O debaixo desce”). Numa mão, a música popular, com sua fusão de elementos regionais e urbanos, circulando pelos meios de comunicação de massa; na outra, a poesia culta, letrada, poesia do livro. São balizas entre as quais transita a produção artística de Ademir Assunção. 

Se “Psicologia da Composição” se desdobra em oito segmentos, “Parapsicologia da Decomposição” se compõe de dez, o primeiro dos quais transcrevo aqui na íntegra:

 

1

 

Entro no meu poema

como quem suja as mãos.

 

Não tem trema, não tem métrica,

não tem esquema,

na paisagem trêmula

(do poema),

 

tem treta com a polícia,

tiro na surdina das noites,

sangue, urina, esperma,

vísceras lambidas

por língua de cão,

 

cheiro de pólvora na carne,

não-deserto, não-arquitetura, brisa seca,

cimento-sim, concreto

lavado de sangue,

tripas, tendões,

músculos

tingidos pela mesma água podre,

 

densa, espessa,

imagem invertida

no espelho

que sempre se embaça,

imagem

que nunca se alcança.

  

Os primeiros versos retomam e invertem os sentidos dos versos iniciais do primeiro segmento de “Psicologia da Composição”. Neste, pode-se ler: “Saio de meu poema / como quem lava as mãos.” Assunção, sartreanamente, declara preferir “sujar as mãos” ao entrar no seu. Ao “verso nítido e preciso” (segmento II), o poeta contrapõe a “imagem invertida no espelho que sempre se embaça”; ao “deserto” cultivado “como um pomar às avessas” (segmento VIII), temos aqui o “não-deserto”; ao “edifício” do “engenheiro que sonha coisas claras” (poema “O Engenheiro”, de outro livro de Cabral), contrapõe-se a “não-arquitetura”; pode-se ter o “cimento-sim”, o “concreto” das edificações dos grandes centros urbanos, mas é “concreto lavado de sangue, tripas, tendões, músculos”. O poeta insiste na vida dos homens na urbe, marcada pela violência (“treta com a polícia”, “tiros na surdina da noite”). E insiste também nas imagens viscerais, nos elementos que remetem à corporeidade humana (“tripas, tendões, músculos”; “sangue, urina, esperma”). 

Vale conferir, nesse sentido, o segmento 7, que retoma, por sua vez, o segmento VII de “Psicologia da Composição”. Neste último, temos o seguinte: “É mineral o papel / onde escrever / o verso; o verso / que é possível não fazer. // São minerais / as flores e as plantas, / as frutas, os bichos / quando em estado de palavra.” O branco do “papel”, onde se pode ou não escrever, cede então espaço para a “tela do computador”; à mineralidade das coisas vivas “quando em estado de palavra”, contrapõe-se a fluidez das secreções que compõem o corpo: “Na tela do computador / se trava uma guerra / contra a morte dos líquidos / no corpo ainda vivo. // O corpo, seus líquidos, / lágrima, suor, esperma, / água de engrenagens vivas / sob o sol amarelado / posto no lixo, descartado.” 

Análise comparativa de maior fôlego demandaria ensaio específico. Os poemas de Assunção são ricos de nuanças e estabelecem um diálogo multifacetado com os do mestre pernambucano. E a poesia de João Cabral de Melo Neto, vista nos seus tantos desenvolvimentos, é complexa. Corre-se sempre o risco de se cair em clichês e simplificações ao restringi-lo ao fabro lúcido e rigoroso, ao poeta eminentemente anti-lírico, “o engenheiro”, o poeta da “pedra” e da “faca só lâmina”. Se esse é aspecto de sua produção que parece provocar o embate de Ademir Assunção, talvez o que esteja em causa aqui seja mais certa derivação da poética cabralina, presente na poesia brasileira de meados do século XX em diante, cujo limite é o da poesia estritamente cerebral, da palavra centrada só na palavra, do voltar as costas para a vida e para os transes sociais e políticos (o que Cabral nunca fez). É à vida e a tais transes que Assunção dirige as armas de seu ofício, num enfrentamento que pode implicar, evidentemente, em riscos – riscos de vida e de poesia. 

A propósito de tais riscos (de poesia e de vida, vale sublinhar), no segmento final de “Parapsicologia da Decomposição”, que encerra Risca Faca, pode-se ler, numa auto-advertência que tem muito de ironia: “Calma, poeta, muita calma / nessa hora, / senão (ainda) vão botar defeito, / e vão será o efeito, / do ritmo, istmo, irregular, / símile / do pulso / cada vez mais fraco, / no corpo (sangue) / estirado no chão.”

Risca Faca é livro de muitas urgências, num momento de maturidade criativa individual e em meio a retrocessos coletivos. Sintetiza bem as principais preocupações e investidas do autor pela poesia, pela prosa, pela crítica, pela música popular e pela edição de revistas ao longo dos anos. É livro que marca posição no campo estético e político. Livro vigoroso, que toma partido.

 

Marcelo Sandmann – out/nov 2021



Risca Faca – Ademir Assunção

São Paulo: Selo Demônio Negro, 2021

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