Lapidar, dilapidar: algumas palavras sobre a poesia de Luciana Martins (1ª parte)


Luciana Martins nasceu em São Luís, no Maranhão, em 1964. Morou, durante parte da infância, em Barra do Corda e Itapecuru Mirim, no interior daquele estado. Depois viveu em Brasília, viveu em Curitiba e está de volta a Brasília há já uns bons anos. Publicou até o momento quatro livros de poesia: Lapidação da Aurora (São Paulo: Giordano, 1996); “Espetáculo das Sensações Alheias” (Curitiba: Medusa, 2003); Lyrica 75mg (Rio de Janeiro: 7Letras, 2015); e Impropérios (Curitiba: Kotter, 2019).

São livros distintos entre si, já pelo fôlego de cada um deles, já pela temática (apesar de se poder perceber a reiteração de motivos e assuntos), já pelo modo como a poeta reage, a cada vez, através da palavra, às circunstâncias pessoais e comuns. Relê-los à luz do crítico momento presente e à luz do último livro da autora, que ataca vigorosamente tal momento (e de onde a poesia, ameaçada de morte, parece ter se exilado), é rever trajetória de criação e de vida voltada à palavra literária, num enfrentamento franco das dores pessoais, e, mais recentemente, também das dores coletivas.


Lapidação da Aurora

O primeiro livro, Lapidação da Aurora, é uma plaquete com 36 poemas, em formato pequeno de 10 x 15cm, com capa azul dégradé, sóbria, despojada, sem foto ou ilustração. São poemas curtos (raros os que extrapolam o âmbito de uma página), com versos quase sempre muito curtos. Poesia lírica, contida, centrada nos afetos.

O trabalho se divide em duas partes. Na primeira, “Amar”, lemos 15 poemas, todos eles voltados à temática amorosa, anunciada também já na primeira estrofe do texto de abertura: “aflora da palavra / um campo sedutor / onde planto novamente / o dizer do amor” (“encantamento”). Mais adiante, o homônimo “amar”, aforismático, sentencia: “construir estradas / para se perder”.

O amor que vai ser dito aqui é, fundamentalmente, o amor entre homem e mulher, e pela perspectiva feminina. Um “feminino” que põe muitas vezes em causa papéis tradicionais e reivindica para si também o gesto afirmador:

 

Ulisses


embevecida ficarei

quando chegares

com teus passos

de rei

pisando o tapete

que, durante anos,

em minhas navegações,

teci com as linhas

das borbulhantes vagas

(eu, Penélope, também ousei)

 

Em alguns poemas, o erotismo aflora: “teus dedos, / penetrando de saída / os meus dédalos escuros, / desencaminhando meu corpo / – dúctil à sua passagem – (...)” (“Teseu”); “um vago afago teu / no meu corpo é um estrondo / – asa de pombo / batendo na hora do rush...” (“platônico”). Outros falam do amor quando dor: “de que vem o amargor do amor? / asperezas, facas cegas / insistentemente esfregadas / na carne de nós?” (“questões”). Já outros são pura singeleza e jogo intertextual: “ele me deu / a rosa enfurnada / num plástico decorativo // – a rosa em si / já não seria o enfeite? // rosa... // o que é uma rosa, / Gertrud?” (“lembrancinha”). Mas amor perfeito, apenas o doce de infância, em lance rememorativo:

 

definição

 

Era de polvilho doce

e era decorado

com a marca do garfo.

Gosto que se dissipava

aos poucos,

derretia na boca

como um idílio fugaz.

Assim era o amor-perfeito,

biscoito de minha infância

que, agora, polvilha

minha memória.


A segunda parte se intitula “Vagar” e é composta de 21 poemas. Aqui, a poeta desvela outros aspectos de sua subjetividade, tangenciando muitas vezes melancolia e desalento: “lado oposto: / único lado / exposto / de mim (“disfarce”); “minha configuração verdadeira / é só um monte de livros / uma vontade qualquer de amor / uma infância que adquiri na memória” (“desvelamento”); “o que sou hoje / é apenas sobejo / do que ontem fui” (“pessoando”); “quero dizer mas não digo nada / sangra o canal das lágrimas // se pisar o chão magoo a terra / com minha aspereza” (“domingo”); “vou me abandonar ao relento / do mais alentador desespero” (“desalento”); “estou me sorvendo / estou me sorvendo em goles / estou me sorvendo em goles parcos / e a garganta dói quando me engulo / – líquido ácido” (“salmoura”).

Mas o cansaço existencial pode ser de alguma forma redimido, como indica o último poema do livro:

 

manhã

 

Me recolho fatigada

com o peso de um mundo fatídico.

Amanhã acordarei resplandecente,

inebriada pela leveza dos lençóis

que me envolvem o corpo (essa minha proteção).

E, ao olhar pela janela de meu quarto,

vislumbrarei a auréola embranquecida

que envolve os edifícios e as casas,

a auréola de granito que me envolve,

a auréola de doçura que envolve os homens.

Diante dessa paisagem matinal nada farei,

a não ser a lapidação,

trabalhosa e realizadora,

da aurora.

 

 “Lapidação da aurora” é expressão bela e sugestiva. O verbo “lapidar”, em uma de suas acepções, significa cortar, desbastar, polir uma pedra preciosa bruta até que ela atinja o máximo de sua beleza e brilho. Daí um sentido segundo, figurado: aperfeiçoar, aprimorar, burilar. Pode ser o trabalho da poeta com as palavras, mas também com sua própria existência. No caso da “lapidação da aurora”, pode ser o trabalho do sujeito com o tempo, próprio e coletivo, que se renova. À noite (à noite da alma e do mundo), segue a manhã do novo dia, com suas promessas de realização.




“Espetáculo das sensações alheias” 

O livro seguinte, “Espetáculo das sensações alheias” (aspas propositais no título), com 64 poemas, retoma e expande temas e formas presentes no livro de estreia. São muitos os textos em que a poeta fala de si, de seu modo singular de estar no mundo. São muitos os que falam do amor, mas agora sobretudo pela ótica do desencontro. Também o jogo intertextual se intensifica.

O título (e daí as aspas) é expressão que se encontra no Capítulo XXII de Dom Casmurro, de Machado de Assis, um dos capítulos da parte inicial do romance, justamente intitulado “Sensações alheias”. Nele, Bentinho e prima Justina conversam sobre Capitu. Desconfiada do envolvimento dos dois, prima Justina tece elogios aos atributos da moça, para sondar as reações do rapaz. Este reage entusiasmado aos elogios e os reitera. Mais tarde, já à noite em seu quarto, Bentinho relembra o episódio: “Só então eu senti que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos. (...) Creio que prima Justina achou no espetáculo das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que narram.”

A par do contexto específico de cena e personagens, trata-se também de reflexão a respeito do efeito da literatura sobre os leitores. “O espetáculo das sensações alheias”, devidamente apresentado numa obra, é prazeroso, pois reaviva as nossas próprias. No livro, “as sensações” de Luciana Martins se dão em “espetáculo”, num misto de confissão e jogo de cena. Na epígrafe de umas das partes, colhida em Yi Sáng, a propósito, pode-se ler: “O sentimento é uma espécie de pose”.

A consciência da situação teatral se evidencia no subtítulo, que não está na capa, e que só lemos ao folhear as primeiras páginas: “drama lírico em três atos”. A capa, aliás, colorida (verdes, azuis, rosas, pretos se destacam), traz uma foto desfocada de duas mulheres, de costas, caminhando. A que está mais à esquerda, ao que tudo indica, é a própria autora. A que está mais à direita, de saia curta de bailarina, chapéu e botas, parece personagem saída de algum tipo de representação cênica. Poderia se constituir numa espécie de duplo da primeira. A foto pouco nítida sugere que o espetáculo que se vai dar aos olhos do leitor, ao mesmo tempo em que promete revelar, pode não revelar muita claramente. A segmentação interna do livro glosa o mote presente no subtítulo: trata-se de um “drama lírico” com “Prólogo”, “Párodo”, “Primeiro ato”, “Segundo ato” e “Terceiro ato”.

“Prólogo” traz um único poema, “evangelho”, o primeiro um pouco mais extenso de Luciana Martins. E a “boa notícia” (que é o que significa “evangelho” em grego) começa assim: “Escrava do amor, / seja ele verdadeiro / ou apenas ilusão, / quem sou eu / senão alguém / que ano que vem / será feliz? / Inspirada em Noite de reis de Shakespeare, concluo: / tudo fenece se o amor falece.” E está anunciado desde já um dos temas centrais do livro: novamente a experiência do amor, agora sobretudo a partir do sentimento da perda: “Levaram de mim as palavras; / tudo isso enquanto eu pegava um solzinho lá fora, / despretensiosamente, e, diga-se de passagem, desarmada. / Apenas o livro na mão. / O título do filme já conta tudo: / Dormindo com o inimigo. / Nem é preciso assistir, óbvio. / (...) / Não suporto que me dilacerem os membros, você é / testemunha. / E, no entanto, foi só virar as costas... / punhal. / Até hoje ninguém conseguiu tirar.” Se o sentimento de traição se expressa aqui, a autora reconhece que também é responsável pelo modo como tudo se configura: “Mas seria bom esclarecer que culpa ninguém tem: / sou vítima de minha própria armadura; / não esculpi a carcaça muito bem / de maneira que qualquer um logra / trespassar-me”.

Prosaico e confessional, em meio ao franco desabafo, o poema tira rendimento dos seus muitos e irônicos jogos intertextuais. Se Shakespeare e o cinema já foram convocados, é Fernando Pessoa do célebre “Mar Portuguez”, de Mensagem, que surge em seguida. Diz a poeta: “Os anjos engessados / não podem singrar a dor. / Molde-se a ela, pois pois! / Passar ‘além do Bojador’, Fernando, / só se for num navio pirata. / Oficialmente não dá certo, / porque são terríveis as tormentas. / Amor: milagre ou logro?” Para “passar além do Bojador” é preciso “passar além da dor”, diz Pessoa sobre a aventura marítima portuguesa. Assim, a poeta vai registrar as suas (dores e aventuras), que são de amor (“milagre ou logro?”), mas também dores de existência, tema que se desdobra da experiência amorosa para se tornar outro assunto importante: “Doente, doente, doente, entretanto. / O ente que dói é o ser? / Responda-me rápido, Heidegger! / Senão vou recorrer ao / Nietzsche / ou a minha mãe.” E tudo se conclui com tirada que remete ao texto bíblico que dá título ao poema e abre perspectiva para alguma espécie de “ressurreição”: “‘Levanta-te e anda’ / disse Jesus ao homem que jazia enfermo; / eu, espertinha, aproveitei o milagre bíblico / e também saí do leito de morte.”

“Párodo” é o segmento seguinte, igualmente constituído de um único poema, “fala do coro”. No teatro grego antigo, “párodo” é o momento em que o “coro”, personagem coletiva, entra em cena e declama ou canta, executando sua coreografia. Aqui, neste breve poema, a voz que se expressa observa de fora a própria poeta: “Sacode as grades invisíveis do corpo, procurando debalde sair de si / para entrar, por exemplo, na mulher ‘sem metafísica’ que está do outro lado / da rua e que se deixa ver pela janela do quarto onde nossa poeta escreve.” Novamente o colóquio com Fernando Pessoa, agora Álvaro de Campos, e seu célebre “Tabacaria”: “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” O vertiginoso auto-exame que segue estes versos iniciais só vai se dirimir no final da composição, quando o “poeta das sensações”, da janela do quarto em que escreve, observa o movimento da tabacaria em frente, e reconhece alguém, um homem comum, o “Esteves sem metafísica”: “Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. / Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo / Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.” Em Luciana Martins, o “coro” olha a poeta em seu quarto, que escreve e que tenta sair de si para entrar na “mulher sem metafísica” do outro lado da rua, que ela observa. Um se oferece em espetáculo ao olhar do outro. E o que se impõe é a mediação pela poesia: “Tentar contar o acontecido também / é uma maneira de fazer nascer um novo caos. // Mas cumpria enfrentar a linguagem (...)”. E a “fala do coro” então se conclui, dando início ao “drama lírico em três atos”: “Era o que faltava para o começo”.

“Primeiro ato” traz poemas que falam da própria poeta. Neles, tristeza, angústia, ansiedade dão o tom. A estrofe final de “sintoma” é hiperbólica: “minhas lágrimas / são tão pródigas / que uso toalhas para enxugá-las”. No poema “na batucada”, depois de passar a noite dançando “no ensaio do Ilê Ayê” com um amigo, no carnaval da Bahia, ela ouve dele constatação fulminante: “Você é alegre como um réquiem”. Em “táticas para atacar a depressão”, a poeta arrola três, entre elas, em tom de galhofa: “escolher calcinha e meia-calça de R$ 1,99 numa lojinha do centro”. Em “melindre”, o suicídio se afigura no horizonte: “se não acabei com minha vida até o momento / foi por receio de parecer indelicada”. 

Mas o retrato mais acabado do sujeito aparece em “eu”, que elenca títulos de obras literárias, nos quais a autora encontra (tanto nas obras quanto nos títulos) elementos com que se definir:

 

eu

 

viagem ao fundo da noite

na vertigem do dia

perto do coração selvagem

terra devastada

a igreja do diabo

vinhas da ira

o morro dos ventos uivantes

uma canção desesperada

as flores do mal

crime e castigo

o idiota

a mulher desiludida

em busca do tempo perdido

e o vento levou

cem anos de solidão

 

Em “Segundo ato”, os poemas giram quase todos em torno da temática amorosa. Abundam aqueles que tratam de desencontros, quando não francamente do processo de separação.

O “naufrágio” da relação é anunciado em “efeitos hollywoodianos” (as referências ao cinema, além da literatura, como se vê, são muitas): “um titanic naufragou / dentro do meu coração // partiu-se-me o peito / ao meio / – o amor era o recheio”. O poema “fatalismo” é explícito a respeito: “nossa vida era puro deslumbramento / veio um dia / depois outro / e o túmulo do amor floriu / à nossa espera”. A partilha dos bens é tematizada, como em “partilha 2”, que fala de divisão das mais duras para um casal que ama a literatura: “difícil / dividir / meio a meio / as dedicatórias / nos livros / que ganhamos juntos / – único registro da eternidade daquele amor”. Coisas são levadas, outras deixadas, a ausência se faz assim também presença: “esta flor de violeta sobre a mesa / é tua presença deixada na casa // é o selo violento de tua vida / que me estreita” (“duração”). A fantasia com relação à permanência do amor aparece em outro poema, aqui com recurso ao olhar de fora, em que a poeta observa a si mesma como terceira pessoa: “sob o sol / então se via a passear / de mãos dadas com ele / velhinha já / as cãs de prata / compondo com o ouro / do dia um matiz / de eternidade suprema” (“idílio”).

O segundo livro de Luciana Martins, como se disse, aprofunda assuntos presentes no primeiro, deixando entrever também o lapso de tempo que deu vida aos poemas a cada momento da experiência. Resposta (ou complemento) ao “Ulisses”, de Lapidação da Aurora, é “lamento de Penélope”, outro que vale transcrever na íntegra:

 

lamento de Penélope

 

de rima em rima

vou removendo a resina

de poeta sem verso e sem poema

de mulher sem nome e sem semema

de anjo sem sêmen e só dilema


de rio em rio

vou cavando o fundo atrás de sono

vou fazendo do leito o escorredouro

de minha mágoa tristeza e abandono

 

tendo ele se perdido na ilha de Circe

– aqui do meu lado só há o fantasma –

fui vendo sem que ninguém visse

que amor não é coisa que se plasma

 

vou arrastando o corpo pela casa

vou varrendo pedaços de asa

vou desfazendo a costura

das colchas de cama

 

– Eis o destino desta dama.

 

Mas se o amor morre, ele pode também ressuscitar, como o Lázaro resgatado por Jesus no poema inicial “evangelho”, em cujo milagre a autora toma carona. Alguns poucos textos falam de recomeços, como “impaciência”: “– vou amar de novo? / perguntei ao I Ching // e ele me respondeu: ‘limite’ // eu entendi o enigma / desde o começo, / mas o desobedeci // e amei de novo insistentemente / febrilmente passionalmente / inteiramente.” Ou ainda “epitalâmio”: “depois de tanto silêncio, / vozes, vozes, vozes altas; / piadas, gargalhadas, / conversa fiada... // eis-me (de novo) acompanhada”.

Em “Terceiro ato”, temos textos que recordam a infância em certas localidades no Maranhão, ou que tratam da volta a esses lugares em tempos de férias, ou que criam espaços de idílio para onde vicariamente se pode retornar. A epígrafe, com versos de Cacaso que conversam com “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, é indicativa: “Minha pátria é minha infância: / por isso vivo no exílio.” Este segmento do livro abre, aliás, também com uma “canção do exílio”: “no Escondido / o pequeno brejo / era meu Tejo // a folha do bananal / minha nau // sob o pé / de pitomba / de dor nem sombra // (...) // no Escondido / tempo ido / virava garapa doce (...)”.

O poema “minhas férias” evoca o povoado de Suja Pé, no município de Barra do Corda: “O Sujapé / fica cheio de rãs / na época das chuvas // as crianças correm / com medo / mas a gente as consola”. “Barra do Corda no Maranhão” enumera lembranças (“tudo na santa paz”), entre elas os banhos de rio: “nenhuma mixórdia / no coração / nem sucuruiú / no rio // e eu / descendo por água / numa enorme / câmara / de ar”. A poeta passeia por certos lugares com a sensação de liberdade de alguém que acabou de sair da cadeia, como em “habeas corpus”, revendo personagens meio míticas como “o mendigo João Popó”, em quem os primos jogavam pedras; “o mendigo de pescoço mole”, de “rosto sempre virado pra cima”; ou “o Má-Doido”, que um dia ela havia visto “acorrentado”, “se debatendo numa casa de chão batido”. No retorno a tais lugares, a sensação de um tempo como que intocado: “Aqui inda é como deixei.” 

Nomes de amigos e familiares aparecem nas dedicatórias dos textos: Jorge Abreu, Antônia, Fábia, Larissa, Liana, Bruna. A filha Amanda, então pequena, é assunto de “a herdeira”: “o cabelo de Amanda / é atravessado pelo / silvo do mar // – menina livre / que eu olho correr / sem falha de infância // ‘pequenino grão de areia’”. A citação de canção de Dalva de Oliveira neste último verso corre a par de outra, “animula vagula blandula”, verso do imperador romano Adriano, que aparece como título do poema imediatamente anterior, também endereçado a outra criança: “alma pequena / bem-vinda / branda // anda! / vem e finda / nossa dor / nefanda”.

As recordações ou a revisitação de espaços da infância funcionam como remédio para as dores do presente. Lá, “de dor nem sombra”; “o tempo ido” é “garapa doce”; não há “nenhuma mixórdia no coração”; está “tudo na santa paz”; “nossa dor nefanda” pode findar, como se viu nos versos acima transcritos.

Os diálogos com a literatura, de poeta-leitora assídua, marcam igualmente vários textos de “Terceiro ato”. Livro de contos de Gustav Flaubert é referido em “flaubertiana”: “ah como tem dia / que eu queria / ter apenas un coeur simple / e não um coração dilacerado”. Ao primeiro livro de poemas de Jorge Luis Borges (no qual ele fala de sua cidade natal depois de passar alguns anos com a família na Europa), é dedicado “sobre Fervor de Buenos Aires”, a ecoar as revisitações da autora à infância neste segmento do livro: “passeio na tarde / de um Borges / pleno de jovialidade / – rapaz itinerante / de ruas e rios, mas também / mares e mármores”. Rainer Maria Rilke, nome forte da poesia moderna, é referido desde o título deste poema:

 

a flor de Rilke

 

      para Larissa

 

A rosa quando nasceu

sentia o lado de dentro de si

e temia que o mundo fosse

apenas pétalas condensadas.

 

Quando se abriu

pôde viver a exuberância do jardim

o festejo de muitas borboletas

e insetos.

 

Vislumbrou o olho dos gatos

sentiu o toque macio do orvalho

e a mão do anjo que a colheu

para a morte.

 

“Ein jeder Engel ist schrecklich” (“todo Anjo é terrível”), diz Rilke já nos versos iniciais da “Primeira” de suas Elegias de Duíno. Seres que transitam entre o Céu e a Terra, entre a realidade positiva e a transcendente, os “Anjos” rilkeanos estão sempre a nos lembrar dos limites do humano, da efemeridade da existência. A “rosa”, símbolo clássico dessa mesma efemeridade (Ronsard, Malherbe, Francisco de Vasconcelos Coutinho), depois de seu breve apogeu, vem ser justamente colhida aqui por um deles.

Se Machado, Pessoa, Borges, Rilke, autores densos, são leituras diletas, a poesia singela de Casimiro de Abreu pode servir de bom antídoto, como no curtíssimo “descompromisso”, menos poema do que chiste, penúltimo do livro: “estava tão enjoada de coisas ‘herméticas’ e ‘profundas’ / que fui ler Casimiro de Abreu”.

E o último poema, ainda mais breve, composto de um único verso, intitulado “fim”, conclui o “Espetáculo das sensações alheias” deixando no ar pergunta enigmática e nos lembrando ainda uma vez de brevidades e finitudes: “a vida não tem cortinas?”. Se tem, como costumam ter os teatros, é perguntar também quem vem fechá-las (ao fim da vida – ou do livro).


Marcelo Sandmann – nov 2021

 


 

“E este nada, querida, é tudo o que temos”: uma leitura de RISCA FACA, de Ademir Assunção

             

“Risca faca” é expressão popular. Na iminência de uma briga, indica o ato de sacar uma faca e riscar com ela o chão, marcando um limite, intimidando assim o inimigo ou provocando-o a que avance e chegue às vias de fato. Desse sentido primeiro, passou a um segundo: “risca-faca” é o bar, o salão de baile, a casa noturna – de reputação duvidosa para certos padrões – , onde, no calor da bebida e no adiantado da hora, podem ocorrer brigas, por vezes fatais. Riscar a faca em uma pedra, ou em outra faca, é também modo de afiá-la.

Risca Faca, de Ademir Assunção, é livro de gume aguçado. Traz poemas de corte incisivo, de um autor pronto para a briga e que sabe reconhecer e enfrentar seus inimigos. Em tempos de guerra, como estes em que vivemos, é preciso estar atento, marcar território, de armas na mão. E as armas do poeta, como se sabe, são suas palavras.

O livro se divide em cinco partes, cada qual com aspectos formais e temáticos específicos, mas conectadas entre si.

 

1.

A primeira parte se intitula “Sangue Verso Água Brasa” e reúne poemas em que o autor discorre sobre a poesia, sua condição de poeta e de sujeito no mundo. As quatro palavras soltas do título são indicativas desses assuntos e do modo de abordá-los. “Sangue”/“Verso” (onde se pode entrever a conhecida locução “vida e arte”) indica a articulação entre poeta/poema, sujeito/texto, assim como “Água”/“Brasa” sugere o modo antitético de enquadrar as questões (antíteses, contraposições, paradoxos são frequentes no livro). “Sangue” (recorrendo-se a metáforas) é “água em brasa”, assim como “verso” é “palavra acesa que flui”. 

O poema de abertura, “Máquina Pensante”, fala da poesia, fala do poeta, da permanência da poesia para além do próprio poeta: “um poema que se pensa / a si mesmo, como eu penso nele / neste momento // organismo vivo pensante / moto-contínuo em pleno funcionamento / quando quem o pensou // já não esteja mais aqui”. Ao tentar defini-lo, lança-se mão de formulações antitéticas: o poema é “algo do tamanho de um grilo”, mas também “som mais forte que o grito”; é “lógica, mágica e delírio”, onde “lógica” atrita com “mágica”, o que por sua vez provoca o “delírio”. Mas, por detrás das contraposições, surgem elementos de ligação no próprio corpo das palavras: nas aliterações e rimas toantes (“grilo”/”grito”); nas ressonâncias da rima interna com modulação vocálica (“lógica”/”mágica”). Ademir Assunção é hábil na exploração das sonoridades. E assim, nas palavras do poema, a possibilidade da duração: “nada sobrevive // além do além da poesia”. 

Os poemas seguintes desvelam o sujeito que escreve e sua condição problemática, muitos deles atravessados de paradoxos: “me tranquei na caverna com platão / pra enfrentar meus próprios males // (...) // chamei pra briga o capeta de facão / senti o aço perfurando a carne mole / gritei bem alto um tremendo palavrão” (“Caverna”); “já me perdi aqui e ali / e não foi uma vez só // (...) // sem replay sem tira-teima / a vida esfria às vezes queima” (“Perdidos & Achados”); “claro – sou difícil – embora simples / escuro às vezes – avesso às vésperas” (“Lírio no Limo”); “sou o que sou / e também o que não sou // soo na voz que cala / e no silêncio que fala” (“Tudo que Soul”). 

“Metamorfosis” apresenta curiosas transformações do sujeito: primeiro ele é “cavalo”, depois “égua”, finalmente “poeta”. O segmento inicial dá boa ideia do uso expressivo de aliterações, assonâncias, rimas: “agora sou um cavalo / trotando livre pelos prados // brisa nas crinas, narinas / farejando o frescor da relva, // selva que se avoluma / silvos de elfos, lumes // no limo liso das pedras, / riacho de água cristalina”. Do masculino ao feminino, da condição animal à humana, da natureza à cultura, em constante movimento, o poeta conclui: “minha loucura não tem cura”. 

A captação do contemporâneo e a reação vital a ele, que permeia boa parte do livro, também se faz presente: “Nas redes sociais troveja o berreiro // (...) // São tantas as mentiras no whatsapp / No face instagram jornal rádio tevê / Todos ouvem falar e ninguém vê / Os índios mortos na caçamba da picape” (Tô Fraco Tô Fraco Tô Fraco”).  

“Espírito do Tempo”, de dicção coloquial, sintetiza bem as reações contraditórias do poeta frente ao momento. Cansaço, prostração, desejo de morte marcam a primeira parte da composição, a que se segue a revolta e o desejo de abrir caminhos possíveis. Vale uma transcrição integral do poema:

 

 

ESPÍRITO DO TEMPO

  

às vezes bate um desânimo

uma vontade filha da puta

de esticar a corda

apertar o gatilho

ouvir o eco do estampido

tocar fogo na lona do circo

 

às vezes bate uma revolta

uma vontade dos infernos

de acender de novo o braseiro

peitar o leão-de-chácara

chutar a canela do zagueiro

jogar o capanga nas águas do niágara

 

às vezes bate um vento

e se não há caminhos

eu berro eu corro eu invento

  

Se o poeta inventa caminhos, inventa também os poemas que deixa pelos caminhos. No verso que encerra esta primeira parte (do poema “Caso o Acaso”), em meio às tensões que atravessam os textos e o sujeito que os escreve, Assunção sentencia, afirmativo: “poeta bom é poeta vivo”.

  

2. 

A segunda parte intitula-se “Zona de Confronto”, locução que brinca com expressão conhecida, “zona de conforto”. A paródia é recurso recorrente nesta parte do livro. É para o embate que parte então o poeta. Já no primeiro texto, explicita-se o propósito: o autor quer seu poema “certeiro / como um cruzado // de muhammad ali.” E os poemas-golpes passam a ser desferidos em diferentes direções. 

A marginalização sistemática a que a sociedade condena pessoas e certos fazeres surge de imediato tematizada. “Economia de Mercado” lista ampla série de bens de consumo (do “litro de leite” à “grama de cocaína”, da “garrafa de tubaína” ao “pacote de jontex”), para indagar: “(...) tudo vale alguma coisa / qual o preço de um poema?”. “Aquela Mulher sem Nome” lança olhar de empatia na direção de pedinte acompanhada dos dois filhos, “um de colo, outro de uns 4 anos”: “certamente aquela mulher sem nome / tem um nome, e foi criança, algum dia. / será que ganhou presentes de natal? / será que era coberta nas noites de frio?”. “Um Ogro na Loja de Cristais”, soneto devidamente rimado, enfoca o pária social, o que “pagou mais mico que macaco-prego”, mas que resolve reagir e se rebelar: “Cansou de ser chamado de vagabundo / Jogou no lixo as tralhas do hospício / E entrou com tudo na loja de cristais.”  

O Brasil dos últimos anos, de golpes políticos e desgovernos, é alvo de outros poemas. “Triste Brasil (Atualizando Gregório de Matos)” parodia “Triste Bahia, ó quão dessemelhante”, antológico soneto satírico do barroco baiano: “Triste Brasil! Ó quão estropiado / Estais e estou como papel cagado! // (...) // A ti trocou-te o golpe galopante, / Que deixou todo mundo bem brochado, / É tanto paneleiro agora tão calado, / Tanto beócio dócil e tanto meliante.” “Bala, Bíblia e Lábia”, outro soneto, põe em causa as mancomunações entre políticos, juízes, banqueiros, empresários e líderes religiosos (a elite brasileira, em suma): “o justo é linchado se safa o safado / juiz mais escroto que hostil justiceiro // banqueiro empresário senador fazendeiro / todos sem dó metem a mão no dinheiro / mas deixam a parte do pastor trapaceiro”. São textos diretos, como se pode ver, sem papas na língua, sem ambiguidades. O intuito combativo, em sua urgência, leva de roldão qualquer sutileza. 

Drummond, assim como Gregório, é outro poeta canônico cujos versos servem de mote para reelaborações. Em “Tanto Ódio, Carlos”, lê-se colóquio com versos conhecidos de “Mundo Grande” e “Poema de Sete Faces”, do poeta mineiro: “o mundo é grande / e tem extremos // tem estrela e tem estrume / tem perfume e tem veneno // (...) // mundo mundo vasto mundo / mundo malo mundo bueno.” “Um Idiota no Meio do Caminho” parodia “No Meio do Caminho”, e pinta um retrato devastador do líder da nação, propositadamente não nominado no poema: “não havia uma pedra no caminho / havia um idiota completo (...) / um idiota completo com seu fedor de coisa pútrida / babando bílis, bebendo pus, peidando, defecando / sobre bandeiras verdes sem matas / sobre bandeiras azuis de céus sufocantes / sobre bandeiras amarelas de raiva / sobre bandeiras brancas manchadas de sangue / um idiota completo regurgitando e resfolegando / violência, tortura, ameaças, assassinatos”. O poema se constitui como violento esconjuro, para concluir, em paradoxo: “um idiota maligno digno de pena / que nem vale o esforço de um poema”. 

No Brasil contemporâneo (no mundo contemporâneo do qual o Brasil é apenas parte), o bordão hobbesiano, “o homem é o lobo do homem”, se mostra em sua máxima verdade. O poema “Chacais e Hienas” propõe uma fábula exemplar nesse sentido, revelando um mundo em que o tempo surge como cíclico, e no qual predadores insaciáveis são os protagonistas: “a história sempre termina assim / os chacais – e também as hienas / saltam sobre o leão ferido // (...) // os chacais – e também as hienas / saciam a fome atávica de séculos / e mostram os dentes pontiagudos // mostram os dentes pontiagudos / fiapos de carne entre os caninos / e riem seu riso de escárnio e ganância // (...) // o vento crepita nos galhos secos / um silêncio – que não é paz nem trégua / se espalha pela pradaria savana cidade // a chuva não vem o sol é inclemente / a fome o escárnio a ganância persistem / e a história recomeça de novo e de novo”.

  

3. 

“Livro de Retratos” é o título da terceira parte, composta toda ela de poemas endereçados a certos nomes da história e da cultura. Muitos dos textos são homenagens, especialmente a escritores, músicos, artistas, de quem o poeta extrai exemplos de realização e conduta, ou com quem propõe alguma espécie de embate criativo. Outros (poucos) são novos esconjuros a figuras execráveis. 

Entre os escritores, nomes antigos e novos, do Brasil e do mundo: Arthur Rimbaud, Bashô, Dante Alighieri, E. E. Cummings, Manoel de Barros, Octavio Paz, Robert Creeley, Roberto Piva, Torquato Neto. Entre os músicos, nomes do blues, do jazz, do pop, da música popular brasileira: Blind Willie Johnson, Cartola, Chet Baker, Itamar Assumpção, John Lee Hooker, Miles Davis, Sade Adu. Das artes em geral, o pintor barroco italiano Caravaggio, o fotógrafo brasileiro contemporâneo Juvenal Pereira, a atriz espanhola Penélope Cruz. Da política brasileira recente, Marielle Franco, vítima da violência das milícias, símbolo de afirmação e resistência. Muhammad Ali, boxeador norte-americano, surge novamente, em poema em que a expressão que dá título ao livro se faz presente: “falo língua de negão quando perco o chão / quando o santo é forte quando risco a faca quando o sul é norte”. Da história, o colonizador espanhol Cabeza de Toro, e da história brasileira recente, alguém nomeado como “Coronel U.”, cuja identidade, já indicada no título, se explicita na descrição da cena de tortura que ocupa todo o poema. Ao final da galeria, um “Auto-Retrato”, ponto de chegada dos tantos retratos apresentados. Com exceção deste último, os demais são distribuídos em ordem alfabética, a partir da letra inicial de cada título, o que acaba por compor sequências estranhas, como esta, que a “Chet Baker” faz suceder o “Coronel U.”, seguido então por “Dante Alighieri”, seguido por sua vez por “E. E. Cummings” etc. 

Gostaria de destacar um poema, aquele dedicado ao bluesman afro-americano “Blind Willie Johnson” (1897-1945):

 

 

BLIND WILLIE JOHNSON

  

estradas cheias

de pessoas

 

riscos no asfalto

no ar, nos trilhos

 

trens lotados

carros, aeroplanos

 

lenços, lágrimas

acenos de adeus –

 

quantas histórias

bruscamente interrompidas?

 

quantos gestos

apenas esboçados?

 

quantas palavras

dissolvidas

 

antes

de lançadas ao ar?

 

quantas músicas

que ninguém ouviu?

 

sons macios

fogueiras apagadas

 

a voz rascante

de um negro cego e pobre

 

soando

no lado de fora

 

de uma pequena igreja

em beaumont

 

i want somebody

to tell me

 

answer

if you can

 

i want somebody

to tell me

 

what is

the soul of a man

 

– onde, em que espelunca,

este alguém?

 

pouco importa

agora

 

a noite estrelada

expõe

 

em sua galeria

de arte

 

berçários de galáxias

buracos negros

 

planetas girando

sóis ondulantes

 

nebulosas, asteroides

mundos abissais

 

e todo o movimento reduz

a quase nada

 

o vai-e-vem

das estradas cheias

 

e este nada,

querida

 

é tudo

o que temos

  

Como a quase totalidade dos textos desta terceira parte (as exceções são “Cabeza de Toro” e “Caravaggio”), o poema é composto apenas de dísticos, com versos muito curtos, muitos deles com apenas uma, outros com duas, três ou poucas mais palavras. Trata-se de versos quebrados, que eventualmente poderiam compor unidades maiores, versos mais extensos. Devidamente rearranjados em outros modelos de estrofação que não o dístico, dariam ao texto outro tipo de configuração e ritmo. Assim, um poema um pouco mais extenso como este (extenso para os padrões do próprio livro), que se estende por três páginas, poderia se concentrar em espaço bem mais restrito. Mas o poeta opta por este tipo de construção, cheia de cortes, enjambements, em que o texto se espicha, em que palavras ou pequeno número de palavras como que se isolam, dando ao poema um ritmo trôpego, entrecortado, numa linguagem muitas vezes rente à prosa. 

O que chama a atenção, porém, é o movimento interno geral da composição. Ao ritmo entrecortado da sintaxe e dos versos, sobrepõe-se o ritmo mais amplo das cenas e das ideias. O texto, assim, se desdobra em três tempos, a que se segue um lance conclusivo. 

Num primeiro, surgem as massas humanas em movimento pelos caminhos da América (“estradas cheias de pessoas”, “trens lotados”, “carros”, “aeroplanos”), homens cujos sentimentos íntimos, cuja história pessoal, passam como que desapercebidos, se perdem em meio ao trânsito (“histórias bruscamente interrompidas”, “gestos apenas esboçados”, “palavras dissolvidas”, “músicas que ninguém ouviu”). No segundo, entra em cena a figura singular do músico “negro cego e pobre”, de “voz rascante”, nalgum lugar da cidade de Beaumont, no Texas, onde viveu e morreu. “No lado de fora de uma pequena igreja”, nalguma “espelunca”, Blind Willie Johnson toca e canta, e no canto absorve o movimento do mundo e dos homens, a trama dos afetos, para indagar em seu blues, de modo singelo e profundo: “i want somebody / to tell me // answer / if you can // i want somebody /  to tell me // what is / the soul of a man”. Mas o que seja “a alma de um homem” é questão que fica em aberto. No terceiro tempo, ressoando a pergunta, o foco se desloca da dimensão humana para a amplidão do cosmos (“berçários de galáxias”, “buracos negros”, “planetas girando”, “sóis ondulantes”, “nebulosas”, “asteroides”, “mundos abissais”), diante do qual o que é humano (“o vai-e-vem / das estradas cheias”) parece ínfimo. Ao final, surge a conclusão em abrupto, quando o poeta, de modo surpreendente, se volta para uma interlocutora que só aparece no momento derradeiro, espécie de musa ex machina. E então, dirigindo-se a ela, sentencia, em resposta aos versos do blues (em resposta a todo o movimento do poema), em versos que também parecem blues: “e este nada / querida // é tudo / o que temos”.

  

4. 

“Fábulas Contemporâneas” é a quarta parte de Risca Faca. Aqui, o intuito crítico ainda mais se intensifica, em sátiras mordazes que não deixam pedra sobre pedra. 

Os poemas se querem “fábulas” (a palavra “fábula” aparece sempre nos títulos) e seguem todos o mesmo padrão composicional (com exceção de “Fábula do Naufrágio” e, em certa medida, “Fábula Zen”). Palavras em caixa baixa, sem pontuação, dispostas umas ao lado das outras, preenchem um espaço pré-determinado na página, delimitado a partir de margens à esquerda e à direita, que definem linhas/versos de pouco mais de 8 cm de largura cada uma, variando, porém, o número de linhas de poema para poema. Os textos ocupam em geral uma, no máximo página e meia. 

Em muitos, o recurso a construções anafóricas, repetições de locuções e palavras dá aos poemas um tom obsediante, de martelar ininterrupto de ideias. É o caso, por exemplo de “Fábula da Civilização”: “a civilização mata a civilização mata muito a / civilização mata boi mata vaca mata porco / mata salmão mata carneiro mata frango ma / ta peru mata galinha mata chester mata sí / rio mata congolês mata palestino mata iraqui / ano mata kalapalo mata paraguaio mata boli / viano mata preto mata pobre a civilização ma / ta porque precisa comer a civilização mata / porque precisa civilizar a civilização mata (...)”. 

Já “Fábula da Publicidade” envereda pelo cômico, ao elencar diferentes bordões publicitários, mas em combinações improváveis de palavras: “o mundo é dos black friday !!! mães em nove / prestações sem juros nas casas bahia !!! a / droga que você procura está na drogaria onofre / (...) / troque seu coelhinho de páscoa / por um pet castrado e vacinado !!! no pão de / açúcar é assim : a cada 20 reais você ganha / um selinho !!! / (...) / não pense nos momentos difíceis / – deixe que a funerária novo mundo pense / por você !!! cliente fidelidade tem descontos / especiais na compra de um novo namorado !!! / (...) / a amazon tem o livro de poesia que / cabe no seu bolso !!! no banco itaú você nun / ca toma no cu !!! jingle bells hô hô hô !!!” 

“Fábula de um País”, como o poeta explicita em nota, se compõe de “títulos de séries, filmes, documentários e desenhos animados encontrados na Netflix, exceto no último”. A colagem, com apenas títulos em inglês, propõe um retrato caótico e algo nonsense do país (o “united states of brazil”, como rezam as últimas palavras), em que a dominação cultural se evidencia: “the end of the fucking world mindhunter be // tter call saul dark bright godless rotten peaky / blinders comedians in cars getting coffee dis / jointed the nazis and the final solution (...)”. 

São dezoito “fábulas”, que passeiam por diferentes assuntos: “Fábula da Justiça”, “Fábula da Economia”, “Fábula do Noticiário”, “Fábula da Fé”, “Fábula da Putaria”, “Fábula do Hospício”, “Fábula do Espelho”, entre outras. Ao fim e ao cabo, tem-se um amplo painel do Brasil contemporâneo e seus descaminhos sociais, políticos, econômicos, comportamentais.

  

5. 

A quinta e última parte se intitula “Parapsicologia da Decomposição”, título provocativo que remete, de imediato, àquele de poema e livro importantes de João Cabral de Melo Neto, Psicologia da Composição, publicado em 1947. Cabral, nome fundamental da poesia moderna brasileira, retomava, por sua vez, título de ensaio de Edgar Allan Poe, “Filosofia da Composição”, publicado em 1846, em que o escritor norte-americano destrincha os processos composicionais do seu famoso poema “The Raven”. O poeta pernambucano faz da poesia instrumento de reflexão sobre a poesia, recurso frequente em seus textos e livros, propondo ali toda uma poética pessoal. Assunção segue o expediente, aprofundando reflexão também sobre sua poética, num corpo a corpo com o texto cabralino.   

O título tem muito de derrisão, mas o poema não deixa de ser uma homenagem a Cabral. Assunção atualiza o agon bloomiano, num embate com nome forte do cânone brasileiro. Recorrendo-se aqui ainda uma vez ao título do livro, o autor puxa sua faca e chama o grande poeta da “faca só lâmina” para a briga. 

Duas epígrafes secundam o título: uma do próprio João Cabral de Melo Neto, do poema com o qual Assunção dialoga, e outra da canção “A Cidade”, de outro pernambucano, o músico Chico Science, nome importante do movimento Mangue Beat (“A cidade não para / A cidade só cresce / O de cima sobre / O debaixo desce”). Numa mão, a música popular, com sua fusão de elementos regionais e urbanos, circulando pelos meios de comunicação de massa; na outra, a poesia culta, letrada, poesia do livro. São balizas entre as quais transita a produção artística de Ademir Assunção. 

Se “Psicologia da Composição” se desdobra em oito segmentos, “Parapsicologia da Decomposição” se compõe de dez, o primeiro dos quais transcrevo aqui na íntegra:

 

1

 

Entro no meu poema

como quem suja as mãos.

 

Não tem trema, não tem métrica,

não tem esquema,

na paisagem trêmula

(do poema),

 

tem treta com a polícia,

tiro na surdina das noites,

sangue, urina, esperma,

vísceras lambidas

por língua de cão,

 

cheiro de pólvora na carne,

não-deserto, não-arquitetura, brisa seca,

cimento-sim, concreto

lavado de sangue,

tripas, tendões,

músculos

tingidos pela mesma água podre,

 

densa, espessa,

imagem invertida

no espelho

que sempre se embaça,

imagem

que nunca se alcança.

  

Os primeiros versos retomam e invertem os sentidos dos versos iniciais do primeiro segmento de “Psicologia da Composição”. Neste, pode-se ler: “Saio de meu poema / como quem lava as mãos.” Assunção, sartreanamente, declara preferir “sujar as mãos” ao entrar no seu. Ao “verso nítido e preciso” (segmento II), o poeta contrapõe a “imagem invertida no espelho que sempre se embaça”; ao “deserto” cultivado “como um pomar às avessas” (segmento VIII), temos aqui o “não-deserto”; ao “edifício” do “engenheiro que sonha coisas claras” (poema “O Engenheiro”, de outro livro de Cabral), contrapõe-se a “não-arquitetura”; pode-se ter o “cimento-sim”, o “concreto” das edificações dos grandes centros urbanos, mas é “concreto lavado de sangue, tripas, tendões, músculos”. O poeta insiste na vida dos homens na urbe, marcada pela violência (“treta com a polícia”, “tiros na surdina da noite”). E insiste também nas imagens viscerais, nos elementos que remetem à corporeidade humana (“tripas, tendões, músculos”; “sangue, urina, esperma”). 

Vale conferir, nesse sentido, o segmento 7, que retoma, por sua vez, o segmento VII de “Psicologia da Composição”. Neste último, temos o seguinte: “É mineral o papel / onde escrever / o verso; o verso / que é possível não fazer. // São minerais / as flores e as plantas, / as frutas, os bichos / quando em estado de palavra.” O branco do “papel”, onde se pode ou não escrever, cede então espaço para a “tela do computador”; à mineralidade das coisas vivas “quando em estado de palavra”, contrapõe-se a fluidez das secreções que compõem o corpo: “Na tela do computador / se trava uma guerra / contra a morte dos líquidos / no corpo ainda vivo. // O corpo, seus líquidos, / lágrima, suor, esperma, / água de engrenagens vivas / sob o sol amarelado / posto no lixo, descartado.” 

Análise comparativa de maior fôlego demandaria ensaio específico. Os poemas de Assunção são ricos de nuanças e estabelecem um diálogo multifacetado com os do mestre pernambucano. E a poesia de João Cabral de Melo Neto, vista nos seus tantos desenvolvimentos, é complexa. Corre-se sempre o risco de se cair em clichês e simplificações ao restringi-lo ao fabro lúcido e rigoroso, ao poeta eminentemente anti-lírico, “o engenheiro”, o poeta da “pedra” e da “faca só lâmina”. Se esse é aspecto de sua produção que parece provocar o embate de Ademir Assunção, talvez o que esteja em causa aqui seja mais certa derivação da poética cabralina, presente na poesia brasileira de meados do século XX em diante, cujo limite é o da poesia estritamente cerebral, da palavra centrada só na palavra, do voltar as costas para a vida e para os transes sociais e políticos (o que Cabral nunca fez). É à vida e a tais transes que Assunção dirige as armas de seu ofício, num enfrentamento que pode implicar, evidentemente, em riscos – riscos de vida e de poesia. 

A propósito de tais riscos (de poesia e de vida, vale sublinhar), no segmento final de “Parapsicologia da Decomposição”, que encerra Risca Faca, pode-se ler, numa auto-advertência que tem muito de ironia: “Calma, poeta, muita calma / nessa hora, / senão (ainda) vão botar defeito, / e vão será o efeito, / do ritmo, istmo, irregular, / símile / do pulso / cada vez mais fraco, / no corpo (sangue) / estirado no chão.”

Risca Faca é livro de muitas urgências, num momento de maturidade criativa individual e em meio a retrocessos coletivos. Sintetiza bem as principais preocupações e investidas do autor pela poesia, pela prosa, pela crítica, pela música popular e pela edição de revistas ao longo dos anos. É livro que marca posição no campo estético e político. Livro vigoroso, que toma partido.

 

Marcelo Sandmann – out/nov 2021



Risca Faca – Ademir Assunção

São Paulo: Selo Demônio Negro, 2021

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