Lapidar, dilapidar: algumas palavras sobre a poesia de Luciana Martins (2ª parte)


Lyrica 75mg 

“A alma é lírica ou química?”, pergunta Ligia Cademartori em “A fala do corpo”, texto que compõe o posfácio de Lyrica 75 mg, terceiro livro de poemas de Luciana Martins. 

Se a “dor” é assunto recorrente na poesia, esteja associada à experiência do amor ou aos percalços da existência (como se viu, aliás, nos trabalhos anteriores da autora), trata-se habitualmente de dor que incide sobre a “alma” e não propriamente sobre o “corpo” (para recuperar aqui, sem reparos, velha dicotomia). Mas, no caso deste livro, o que se vai tematizar, em primeiro plano, é a “dor física”, com suas óbvias consequências afetivas e existenciais. 

Lyrica 75 mg é composto por 72 poemas, sem título, numerados com algarismos romanos, em sua maioria textos curtos. A capa traz um desenho de Amanda Guerrero, filha da escritora. Nele, vemos o esqueleto de ser fantasioso, algo monstruoso, com rabo, chifre (qual unicórnio), pés grandes, braços arriados, curvo, dobrado sobre si, como que prostrado. “Teus ombros suportam o mundo”, diz o verso de Drummond que será referido mais de uma vez, e do qual a caricatura grotesca parece zombar. 

“Lyrica” (assim com ípsilon) poderia remeter ao modo como a palavra é grafada em latim (lyrĭcus, -a, ­-um, adjetivo oriundo do substantivo lyrica, vocábulo de origem grega), sublinhando o vínculo do livro com a tradição literária. No entanto, Lyrica 75mg é, na verdade, marca e dosagem de fármaco disponível no mercado: Lyrica®. Conhecido também pelo nome genérico “pregabalina”, é remédio indicado para o tratamento de “dor neuropática”, “epilepsia”, “transtorno de ansiedade generalizada (TAG)” e “fibromialgia”. Há algo meio perverso, a meu ver (mesmo que involuntário), no nome comercial deste medicamento, mas que a poeta sabe muito bem reverter, ao aproveitá-lo de maneira irônica (ou dolorosamente auto-irônica). 

O primeiro poema assinala e comenta a palavra que vai estar presente em praticamente todos os textos do livro:

  

I

 

“dor”

é palavra curta

exatamente porque

com a dor

não se tem

o que dizer

acima de uma

sílaba

 

         ai ui

         e outra série de gemidos

 

Ao monossílabo “dor” (e ao conceito algo abstrato nele implicado), correspondem interjeições monossilábicas (mas de teor bastante concreto), que se manifestam pela voz que vem do corpo sofredor. Dizer (elaborar poeticamente a dor), como se vai fazer ao longo dos poemas, é algo já distanciado, uma operação intelectual/emotiva a posteriori, realizada a partir de sensação urgente e primeira (da memória de tal sensação). No momento em que acontece, a dor elide o discurso (e, portanto, qualquer possibilidade de poesia) para ser gemido, ou grito, gesto instintivo (“ai ui / e outra série de gemidos”, dístico que se repete em outros textos). Para aquele que testemunha a dor física alheia, ela de fato só se evidencia por intermédio de sons inarticulados, movimentos convulsivos do corpo. 

A brevidade da palavra “dor” e das interjeições que a expressam encontra contrapartida na brevidade dos poemas e dos versos, compostos, estes, tantas vezes de uma, duas, três ou poucas mais palavras. São versos quase sempre fragmentados, de ritmo trôpego, alquebrados, pouco musicais. Por vezes, as palavras são distribuídas pelo branco da página, em flerte com a poesia visual, posto que a linearidade sintático-discursiva seja mantida. O andamento algo gago, a dificuldade no dizer, de fazer com que a fala flua de modo mais solto, que ela se espraie em versos melódicos, um pouco mais longos – tudo isso incrusta, na própria carne dos poemas, a experiência vital de que são feitos. 

Como se disse, a palavra “dor” ocorre na maioria absoluta dos textos, que são, na verdade, variações exaustivas sobre um mesmo e único tema: “dor que é sempre a mesma / (...) / esta dor não é metafísica / é física / não é metáfora / é metonímia / – a parte dói pelo todo (...)” (poema VI). A dor (que “se viciou neste dorso”) pode ser amante (o grande amor da vida): “já sói ser amor / – única vez que fui amada” (II). Pode ser também amiga: “fiel escudeira / jamais me abandonou / melhor amiga – quando todos / me deixaram (...)” (VII). Não se trata de dor passageira: ela é “matutina / vespertina / noturna / diurna // sempiterna / diuturna” (III). Mas é, sobretudo, “dor escrota”: “– se eu te adjetivasse / de ‘lancinante’ / por exemplo / te daria muita importância / te daria grandeza poética” (XXI).  

Com ou sem “grandeza poética”, o único modo de enfrentá-la, para além da medicina, é via poesia, sem apelo: “estas páginas foram reservadas exclusivamente para / uma ode à dor // (...) // afio perseverante / pontas de lápis / para combatê-la” (poema VIII); “a dor me definha / mas não me define // reajo / com ela me engalfinho (...)” (XIV); “no meio termo entre a vigília e o sono / no lugar em que viceja a dor / forço um resplendor / que a transforma em poesia” (LII). 

Nesse embate (vital e literário), os intertextos serão muitos, a começar pelo célebre “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, retomado e descarnado por Luciana Martins:

 

XII

 

autopsicografia:

         escrevo

         a partir de uma dor

 

         a tida

         a sentida

         a lida

         a não havida

 

Ou ainda Carlos Drummond de Andrade, que surge pelo menos duas vezes. Na primeira delas, interpelado por Paulo Henriques Britto: “‘os ombros suportam o mundo’ – diz o drummond / ‘são as palavras que suportam o mundo / não os ombros’ – contesta o paulo henriques”. Ao que a poeta replica: “no mundo / sobrevivo / por causa / de ambos” (poema XLIV) – “palavras” e “ombros” (alma & corpo, arte & vida, se quisermos). E, mais adiante, em outro poema, ainda a propósito do peso do mundo: “e este pesa / a mão de uma criança / afegã ou síria”, ou “brasileira”, “que fuma crack nas praças” (LIV). 

O risco de derivar a poesia como que em exclusivo de experiência pessoal e urgente (abrindo mão da ficcionalização das sensações e sentimentos, tão certeiramente tematizada por Pessoa no seu “Autopsicografia”) não escapa à autora. Em diálogo com “Cogito”, de Torquato Neto (“eu sou como eu sou / pronome / pessoal intransferível / do homem que iniciei / na medida do impossível”), Luciana Martins entrevê a possibilidade de tornar-se “imprópria para a literatura”:

  

XLVI

  

sob a égide

       da dor

não há como

não      ser

     pessoal

intransferível

            para um distante

                                      eu lírico

viajante

fictício

         de outras paragens

                                      vagante

– fica-se

imprópria para a literatura

 

Mas a autora corre o risco, propondo uma poesia de esgotamentos, reiterativa, como se se vingasse da própria dor ao traduzi-la, à exaustão, em palavras duras – dolorosas palavras. Em dois dos raros poemas mais longos do livro (cada qual ocupando quatro páginas), o recurso à saturação se explicita. No primeiro, a poeta arrola infindáveis verbos, todos remetendo a campos semânticos aparentados (as palavras, no livro, estão dispostas no branco da página em diferentes espaçamentos umas em relação às outras, o que acabo não reproduzindo aqui): “lancina, retalha, aguilhoa, tortura, condói, aflige, lanceia, amachuca, desalenta, acabrunha, crava, golpeia, confrange, contunde, compunge, aperta, atormenta, molesta, penaliza, magoa, (...) oprime, vulnera, rasga, vilipendia, apunhala, ulcera, dardeja, crucia, exulcera, sarja, atenaza, vergasta, macera, calcina, pisa, mata, devora, angustia, amargura, nubla, afugenta, convulsiona, enturva, afeta, sobrecarrega, morde, irrita, mói, exaspera, cansa, atribula, fatiga, caustica, encoleriza, enluta (...) ato crucial: crucificação”, e assim por diante (poema XXXIII, por coincidência, a idade de Cristo quando morto na Cruz). No segundo, que recupera, em seu início, verso final do Canto V do “Inferno” de Dante (“E caddi come corpo morto cade”), é a palavra “corpo” (esse corpo morto que cai) que será adjetivado exaustivamente: “corpo fortuito, sem conforto, torto, quebradiço, frágil, indefeso, corpo-pedra, corpo-vítreo, (...) corpo-discórdia, corpo horrível, grotesco, torpe, sórdido, corpo de borco, corpo em cruz, meu calvário” etc. (poema XXXVI) 

No limite do desespero, o desejo de morte se afigura: “vontade de tomar / o remédio definitivo / para o sono definitivo” (XLVII). Intuito, porém, que não se realiza: “o limiar de dor / é elevado / senão eu já teria / me matado” (LX). 

Estes são exemplos extremos, agônicos, de figurar a dor e a ela reagir. Uma única vez, fresta de esperança se entreabre: “leitor leitora / um dia hei de voltar / a falar da alegria” (LV). Ou lance raro de humor e ironia, como neste (quase) poema-piada:

 

LXV

  

puxei-me os cabelos

com toda a força pra cima

até me soerguer do chão

– atrás do método de terapia barão-de-münchausen

  

No último texto do livro, ainda o vislumbre do fim, em digressão mórbida, a dar a nota definitiva deste terceiro trabalho: “dor / quando eu morrer / vou te pôr / num caixão / e te fechar num sepulcro // lá dentro vais explodir / e tuas partículas / se encontrarão / com o verme”. Depois de se estender, nos versos seguintes, a tratar desse encontro final com o “verme” (“machadiano que fosse”, diz a autora), fica no ar a crua pergunta: “a carcaça desalmada / sem carne sem músculo / depois de largada pelo verme / empanturrado / guardará resquício de dor?” (poema LXXII) 

Relembrando ainda uma vez (e ajustando) “Autopsicografia”, por mais hábil que seja o poeta, não é fácil “fingir que é dor a dor que deveras se sente”. Lyrica 75mg é uma incursão radical pelo sofrimento físico, na tentativa quase impossível de transformá-lo em poesia. São palavras desentranhadas do próprio corpo – dos músculos, dos ossos, da carne, do sangue, da pele, dos nervos. 

Chico Buarque, retomando o mito grego de Hermes (o “deus sonso e ladrão”), lembra que foi ele quem “fez das tripas a primeira lira” – lira que será de Apolo, de Orfeu, de Safo, dos transes dionisíacos, de toda uma tradição. Luciana Martins extrai um instrumento das “próprias tripas”, com o qual vem entoar seu canto dissonante. 

Transcrevo e brevemente comento um último poema, que se conecta bem a essa tradição da poesia, atualizando-a em chave pessoal:

  

XLIX

  

par-

                   ti-

                                      -da-

                                                        em

mil

         pe-

                   -da-

-ços

                                                        sparagmós

                                               “disjecta membra poetae”

 

“Disjecta membra” é expressão latina que designa os fragmentos de textos antigos que sobreviveram à ação do tempo, como no caso dos poemas de Safo e outros líricos gregos. Trata-se de locução cuja fonte é uma sátira de Horácio (“disiecti membra poetae”), e que se poderia traduzir: “membros dispersos/separados do/da poeta” (agora não como fragmentos textuais, mas corpo desmembrado). O grego sparagmós designa o ato de “rasgar”, “destruir”, “mutilar”, nos rituais dionisíacos, quando animais vivos, ou mesmo seres humanos, eram assim sacrificados pelas bacantes, para serem em seguida devorados. É o destino final do poeta Orfeu, numa das versões do mito, vale lembrar. 

O dilaceramento físico, psicológico, verbal acaba por atualizar rito sacrificial que se radica em experiência mítica e literária muito antiga. Se isso não sublima nem redime o sofrimento, pode dar sentido à dor sentida. É por isso, ou para isso, que se faz poesia.


Marcelo Sandmann – dez 2021 

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