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Relendo ALQUIMISTA NA CHUVA, de Assionara Souza

 



Alquimista na Chuva, de 2017, é o último livro de Assionara Souza lançado em vida, seu primeiro livro de poesia. Nascida em Caicó, no Rio Grande do Norte, em 1969, radicada em Curitiba, a autora faleceu nesta cidade, em 21 de maio de 2018, em meio a uma trajetória literária em que se firmava como contista, com quatro livros publicados dentro do gênero: Cecília não é um Cachimbo (2005), Amanhã. Com Sorvete! (2010), Os Hábitos e os Monges (2011) e Na Rua: a Caminho do Circo (2014). Alquimista na Chuva veio dar vazão a uma faceta que estava latente em seu trabalho com a prosa. 

Não é um livro fácil, apesar da fluência da linguagem, da transparência de léxico e sintaxe. Não se trata de uma reunião de poemas distintos, mas de um único longo poema que se desdobra por cerca de 60 páginas, um poema formado de poemas, ou fragmentos poéticos. Por vezes é difícil discernir onde um segmento se encerra e outro se inicia. Não há títulos individuais, ou claras segmentações internas, ou marcações gráficas mais explícitas, para além do habitual recurso à composição em estrofes, um e outro espaçamento maior entre os versos, diferentes disposições destes no branco da página e a presença de ilustrações, assinadas por Raro de Oliveira, também responsável pelo desenho da capa. 

Abundam referências a escritores e obras literárias, sobretudo, mas também à música popular internacional, ao cinema e mesmo às artes plásticas. E parece evidente, na medida em que se avança na leitura, que muito do que compõe o texto é transposição como que direta, mas de modo fragmentário e algo cifrado, de matéria-prima colhida na própria experiência cotidiana e biográfica. Vivências, sentimentos, sensações, devaneios, reflexões pessoais misturam-se a reminiscências de leitura, audição de canções, fruição de imagens, referências a roteiros e personagens cinematográficos. Pessoas do convívio da autora também se fazem presentes. Talvez se pudesse falar em poème à clef, cuja chave estaria longe da mão do leitor. 

Muitas vezes, tem-se a impressão de se estar lendo um diário poético-existencial, com algumas folhas faltantes, outras embaralhadas, sem datação objetiva. As referências temporais, aliás, são esparsas, e é difícil decidir se os acontecimentos de que trata o poema seguem alguma cronologia. 

Na página que abre o livro (três parágrafos em prosa, de caráter introdutório), a autora dirige-se a um amigo, Antoine, com quem quer ter aulas de francês: “Assim, nós teremos aulas nos cafés, imitando Patti Smith, imitando o melhor de nós, nessa paisagem de outono para inverno. Nessa temporada infernal.” E é entre outono e inverno (e um “inverno/inferno”, na rima da canção, jogo vocabular recorrente no livro) que podemos localizar algumas das notações temporais: “desde maio / a vida desmaia / em queda / livre-se / de mim”; “olhos fechados num dia claro de sol / correção: num dia nublado de inverno / une saison”; “julho tem sido difícil na última encarnação”. 

Ao ambiente de outono-inverno, de frio e neblina, em que as folhas das árvores caem (motivo a ser considerado mais adiante), associa-se também a “chuva”, presente já desde o título: “sob a chuva / você se derrama em confissões / todo mundo e o teu coração vivo”; “meus olhos de cão / vão até a janela / a chuva desperta suspiros”; “a chuva tilinta seus níqueis no vidro”. Apesar de passagens de maior leveza, graça e mesmo ironia aqui e ali, esse clima atmosférico em que acontecem muitas das cenas impregna também o clima emocional: “enquanto disfarço minha tristeza”; “a juventude de minha alma começa a envelhecer”; “a boia do olhar lançada ao mar / marasmo / dias blues”; “o inferno de nosso descontentamento”; “não sabíamos ainda que justamente esse tédio / era o que tínhamos de mais valioso”.



Ilustração: Raro de Oliveira




















As cenas, as situações, os espaços se sucedem sem claras transições, sem conexões evidentes entre si, como que em livre associação. Por vezes, está-se no espaço doméstico: “a janela do quarto acende e apaga / clarões de relâmpagos”. Mas a rua é convite constante: “andei pela rua / (não, espera... / câmera antes / fechar a porta, / lembrar – será que fechei a porta?)”: “a porta do elevador se abre / vou pra rua”; “ando pela rua, às 19h de uma luz invernal”. O já referido café, onde se pode encontrar alguém, ou onde se lê ou eventualmente se escreve, é ambiente frequente: “enquanto leio maiakóvski num café // mais precisamente em julho / o resto todo é impreciso”; “o garoto do café tem a voz de uma senhora gorda que sofre de / crises profundas de solidão às seis da tarde / – quem nunca?”; “nunca para em casa / por aí, aos cafés / de frente para essa estação infernal”. Aliás, o café se faz presente já na epígrafe do livro, colhida em verso da compositora Joni Mitchel: “Only a phase, these dark café days”. 

A boemia noturna curitibana também é lugar visitado (assim como alguns de seus ícones literários): “desço as escadas em fuga / lá embaixo, o baixio dos boêmios sem dinheiro / dos leminskis la vie en (cir)rose”; “a noite solta no bairro boêmio / as meninas amys (why not?) winehouse / craquentinhas que o Dalton curte roer com seu melhor canino”. Ou ainda o quarto dos encontros amorosos: “quero tanto, meu bem / se você quiser, também / deitar-me contigo às três da tarde / as janelas do quarto abertas / esvoaçantes cortinas / talvez lá fora, um quintal”; “nós duas, às três da tarde / num quarto lugar-nenhum / felizbliss”; “nós duas naquele arejado quarto / uma janela aberta para um quintal”. Mas o quarto, agora de hotel, pode também ser metáfora: “meu coração não passa mesmo / de um quarto barato de hotel / daqueles que estudantes vadios / pagam seus níqueis merrecas / só pra foder às três da tarde / sem que ninguém os perturbe”. 

É de encontros variados (mas também desencontros) que se faz boa parte do livro. Pode ser com amigo ou amiga, pode ser a pessoa amada, podem ser aqueles com quem se cruza na rua, ou os inúmeros escritores e escritoras, além de outros artistas, que povoam o universo afetivo e intelectual de Assionara Souza. 

A propósito, o livro é dedicado à escritora curitibana Luci Collin. Quem sabe é ela a amiga com quem se sai para conversar nas partes iniciais do texto, como se pode inferir de passagens como estas: “então, dirigimo-nos ao local / a escritora (ela sim!) / me liga oferecendo carona / claro, / ainda mais com você! obrigada! // (...) // minha amiga escreve como nenhum outro / desses escritores homens machos pátria arcados / minha amiga escreve além // (...) // minha amiga medita / é adepta da filosofia zen / eu também / daqui a cem anos talvez // (...) // minha amiga tem dentes lindos / e sabe nomes de flores e frutos e árvores”. A propósito da amizade, num dos tantos versos de tom sentencioso que se vai encontrar, lemos o seguinte: “amigos são amantes adormecidos / brincam de tanto que as almas se adoram”. 

Se a amizade é assunto festejado, também o amor é tema recorrente. Já na página inicial em prosa, uma referência literária chama a atenção. O texto (e com ele o livro) se inicia assim: “Vamos nos lembrar de Apollinaire. De como ele se apaixonou perdidamente pela governanta da casa de uma família alemã, na Alemanha, onde o poeta foi parar, na época que tirava um troco como preceptor da pequena Gabrielle. Uma paixão não correspondida por Annie Playden – a moça que brincou com ele, que jogou com seu coração lírico de leão. Mas estamos falando aqui de um poeta, não estamos falando de alguém que cobra juros altíssimos emprestando dinheiro. Mais ainda, estamos falando de Apollinaire. Estamos falando aqui, mais precisamente, de Annie e La Chanson du Mal-Aimé (...).” E pouco adiante, em reminiscência machadiana: “(...) o mal súbito que essas formas femininas com bocas que falam e pétalas que se abrem de modo oblíquo e dissimulado causam numa mente poética dominada por dançarinas esvoaçantes e violinistas de Chagall”.

Essa relativamente extensa referência ao poeta e a um conhecido poema seu (ao menos de maneira assim clara) ocorre apenas aqui, no trecho de abertura da obra. “La Chanson du Mal-Aimé” (“A Canção do Mal-Amado”) é o poema mais extenso do livro Alcools, publicado em 1913, por Guillaume Apollinaire (1880-1918), um dos nomes fundamentais das vanguardas europeias do início do século XX. Trata-se de poema de 295 versos rimados, dispostos em quintilhas, de metro octossilábico, mas sem qualquer pontuação, o que trunca de imediato seu caráter a princípio tradicional. O poema (aliás, uma “romança”, como se lê em seu verso primeiro) mescla o registro narrativo ao lírico, numa colagem de fragmentos que teriam sido redigidos em diferentes ocasiões. O ponto de partida da escrita, e que lhe serve como elemento unificador, a despeito do caráter fragmentário e da incidência múltipla de mitos e referências literárias, seria a relação mantida pelo poeta com a jovem inglesa Annie Playden, entre 1902 e 1904, desde a convivência na Alemanha, passando pelos poucos reencontros posteriores em Londres, ao rompimento definitivo. Em carta rememorativa, o poeta dizia tratar-se de seu “primeiro amor”, “aos vinte anos”, amor que resumiu assim: “eu a amei carnalmente, mas nossos espíritos estavam longe um do outro”. 

Alquimista na chuva de forma alguma obedece ao tipo de estruturação formal do poema de Apollinaire. Os versos são livres, mesmo prosaicos (“despoetizar o verbo”, diz a autora), passando ao largo de qualquer preocupação com gênero, estrofação pré-definida, metrificação, rimas, encadeamentos acentuadamente musicais (herança simbolista de formação que Apollinaire não abandona). Mas o caráter de colagem de fragmentos, escritos em distintos momentos, onde experiência amorosa de partida se deixa permear por referências e digressões múltiplas, constitui claro elemento de ligação. Apollinaire (ou o eu lírico de seu poema) acaba por se transformar em alter ego da própria escritora.



Ilustração: Raro de Oliveira












Encontro/desencontro amoroso compõe um eixo importante que atravessa o trabalho. De cabo a rabo, ele se faz presente. Ao tratar dos espaços representados na obra, já se referiu aqui ao “quarto” em que tantos encontros se dão. Confiram-se os seguintes segmentos, logo nas primeiras páginas:

 

deixe-me explicar

é que venho sofrendo de uma anestesia lírica

here, there and everywhere

 

impossível ser feliz com o amor entalado na garganta

justamente quando me foi dado engolir o mundo

 

 

– fuja das poses fakes, funny

o mal deste amor (e desse e desse e desse)

foi ser imune à minha loucura

testei todas as munições

 

o tiro

saiu

pela culatra

 

da ausência máxima de amor

restou a dor

e flores murchas

num vaso de vidro

ainda que perfeitamente vivas

                                    coloridas

                                    desejáveis

 


Um pouco mais adiante:

 

vamos fechar os olhos num beijo?

se tem uma coisa que me deixa lúcida

é enlouquecer de amor

 

o amor, esse bandido nômade

nos fazendo flutuar com olhos febris

essa bomba no ventre

a flor examinada no microscópio

não se diferencia em nada de estrelas

onde está o último amor agora?

o que foi o último e devastador amor

o que de tão incerto, impronunciável

 


E “essa bomba no ventre” assume contornos bem físicos:

 

todas as palavras nascem no corpo 

expelidas para fora

tombam no rosto do outro

nos braços

(...)

 

teu corpo

contemplo

devagar, antes da boca

devagar, antes das mãos

bem devagar, o cheiro invadindo a alma

perdoa a minha urgência em ir devagar

meu desejo é esse ser cheio de pernas

correndo em tua direção

agora eu sei sentir com o corpo      

 

Num trecho logo adiante, a pessoa que se ama surge capturada entre o olhar objetivo e os devaneios da fantasia, em múltiplos instantâneos sobrepostos, lance metapoético (“editar: recortar: colar”) que explicita alguns dos recursos utilizados pela autora:

 

você do outro lado da rua

e a rua um rio feito fluxo

minha, a margem urgente

torrente

escombros dizimados de passados

deslizando pela enxurrada

tua margem, calçada de bar

a menina de lá

acena e sorri

um frame lisérgico

fotografar tua imagem

editar: recortar: colar

cenário límpido

[eu te levaria para o terraço de um prédio alto

as pessoinhas pequenas lá de longe: e nós

eu te levaria para uma praia deserta

o mar violento se agigantando: e nós]

teu navio aportando

o lenço esvoaçante no pescoço

dessa margem

água límpida corrente

barquinhos coloridos de papel

flutuando

a mão de criança organiza a fragata

navios soltos nas águas de teus dias

the girl with kaleidoscope eyes

 

A par dos encontros com amigos ou amores, os encontros com escritores (ou criadores) e com a própria escrita/criação se fazem intensamente presentes. Já se destacou aqui a dedicatória do livro, a Luci Collin, a epígrafe com verso de Joni Mitchell e a referência feita na primeira página a Apollinaire e “La Chanson du Mal-Aimé”. Canções dos Beatles surgem de passagem em alguns dos versos atrás transcritos: “here, there and everywhere”, “the girl with kaleidoscope eyes”. A escritora passeia à vontade entre canções pop e a literatura mais sofisticada.

Um poema de E. E. Cummings e outro de Ezra Pound são reproduzidos na língua original. Diversos trechos de Vladimir Maiakóvski, traduzidos por Wellington Müller Bujokas (como se lê em nota), aparecem em meio a passagens de autoria própria. A escritora Hilda Hilst recebe especial atenção: “hilda, queridíssima, / você que ouvia mortos naquela aparelhagem acústica / não me venha dizer que morreu / pois é a mais viva de todas / (...)”. Os amores da freira portuguesa Sóror Mariana Alcoforado (1640-1723), a quem se atribui a autoria das Cartas Portuguesas, são evocados: “(...) / monja do convento da conceição / isenta de inclinação mística / possessa de inclinação lírica / tal qual Hilda”. Outras escritoras são lembradas: Katherine Mansfield, Virgina Woolf, Clarice Lispector, Sylvia Plath, Gertrude Stein. Escritores vários são nomeados ou aludidos: Jacques Prévert, Cesário Verde, Arthur Rimbaud, Caio Fernando Abreu, Eugênio Andrade, Julio Cortázar, Wally Salomão, J. D. Salinger, Walt Whitman, Jorge Luis Borges, Stéphane Mallarmé, Manuel Bandeira, Herberto Helder, Lewis Carroll (cujo Alice no País das Maravilhas é recorrentemente referido) etc. A estes, somam-se também nomes importantes da literatura curitibana: Dalton Trevisan e Paulo Leminski, como se viu, mas também Manoel Carlos Karam, Jamil Snege, Wilson Bueno.

A música é outro universo presente. Já se mencionou Joni Mitchell, Patti Smith, Amy Winehouse e os Beatles, a que se poderia acrescentar Chet Baker, Lou Reed, Björk, entre outros. O cinema oferece igualmente elementos: Jules et Jim, de François Truffaut; A dupla vida de Veronique, de Krzysztof Kieslowski; Thelma & Louise, de Ridley Scott; Muljoland drive, de David Lynch; Betty Blue, de Jean-Jacques Beinex. Também as artes plásticas: Marc Chagall, Henri Matisse, Camille Claudel e seus amores com Auguste Rodin etc. Há uma malha cerrada de referências e intertextos, cuja pertinência, no que toca à composição do livro, análise de mais amplo fôlego poderia explicitar. Trata-se, de qualquer modo, da construção de um universo mitológico-literário pessoal, conversas íntimas que a autora estabelece com criadores que lhe são caros, encontros também no plano do imaginário, para além daqueles no âmbito do amor e da amizade (posto que em conexão com eles).


Ilustração: Raro de Oliveira


Outro ponto ainda a ser considerado são as digressões que tratam da literatura e da própria escrita, que são várias. Por exemplo:

 

a poesia me alegra

                   ma non tropo

 

                   a poesia

                   me contenta

                   me embala

                   me arrebenta com seus miasmas

                   a poesia me ama

cumpre o seu propósito

                   carma atropelado nas estraçalhadas linhas

a poesia sempre me quis

                   me kiss

a poesia sempre me

                   kills me

desde a tensa idade

 


Ou ainda:

 

despoetizar o verbo

toda essa história é verdade

e pode ser comprovada num belo livro de ficção

capa dourada

 


E ainda outra passagem, também jogando com os limites entre realidade e ficção:

 

as ficções distraem

mas nada supera o rascunho sujo da realidade

é para lá que todas as ficções apontam

o mar absurdo de homero

 


A “alquimia” de transformar o “rascunho sujo da realidade” em “ficção” (ou “autoficção”) é o que constitui Alquimista na Chuva, se quisermos voltar ao título e nele projetar sentidos.

À “chuva” (e à atmosfera geral que ela deixa entrever) já se referiu mais atrás. A chuva que cai, as folhas que caem, nesses meses entre outono e inverno, tão característicos da cidade em que a autora escolheu viver, estão presentes no cenário em que a “alquimista” transita. Tempos e espaços, íntimos ou objetivos, encontram-se imbricados.

A propósito, conhecido poema visual de E. E. Cummings, no qual paisagem externa e vivência interna se conjugam, é transcrito já nas primeiras páginas, e acaba por ser retomado ao final do livro:

 

 

l(a

le

af

fa

ll

 

s)

one

l

iness

 

 

A solidão (lonelinessl one l iness) da folha que se desprega do galho (a leaf falls) é motivo que retorna nos versos conclusivos, mas agora em outra chave, depois que a solidão inicial terá cedido espaço aos tantos encontros/desencontros, sem de todo desaparecer. Vale, para concluir, transcrever os derradeiros versos e deixar que eles falem (falling) e calem por si:

 

 

                            a urgência calma

aproximar-se do território do outro

                            continentes à deriva

                            guerras à flor da pele

                            refugiados de meu paíscorpo

                            atravessam a fronteira do teu corpaís

 

de onde estou

avisto

quem me vê

                            caímos, então, em suave queda

                            f

                                   a

                                          l

                                                 l

                                                        i

                                                               n

                                                                      g

 

 

 

 

 

 

Marcelo Sandmann – mar 2022

“A poesia se escondendo pelos cantos”: uma conversa com Amarildo Anzolin


Amarildo Anzolin
Foto: Bruno Tadashi













Amarildo Anzolin nasceu em Curitiba em 1970. É poeta, letrista, redator, revisor, roteirista, radialista, performer, ministrante de oficinas de escrita e produtor cultural. Publicou até o momento os seguintes trabalhos: Co-Lapso (Ócios do Ofício, 1995), Igual (Ócios do Ofício, 1998), Única Coisa (Livro-CD-VHS – Fundação Cultural de Curitiba, 2000), Eu Também (Livro-CD – Editora Medusa, 2003), Cânone (DVD – Fundação Cultural de Curitiba, 2007), Evite Permanecer Nesta Área (Terracota, 2012), Hospedaria de Cuidados Paliativos (Água Quente, 2016) e Central de Despachos Nossa Senhora das Graças (Água Quente, 2021). Para este último, lançado no final de 2021, escrevi o texto de apresentação, a convite do autor. Sobre o livro, bem como sobre sua trajetória, tivemos a conversa que se lê a seguir. Ao final da entrevista, reproduzo alguns poemas, que ilustram o que se discutiu.



Central de Despachos Nossa Senhora das Graças













01. Como você chegou à poesia?

Nas primeiras séries da escola, mesmo os “Albertos de Oliveira” já mostravam que a poesia tinha alguma coisa diversa dos demais textos e artes. Na época não entendia, depois fui travar contato com poetas mais interessantes para uma criança quase adolescente. Mas me parece até hoje um contrassenso as aulas começarem com clássicos e depois chegarem nos contemporâneos. Os livros de linguagem traziam impressas letras de canções de Chico Buarque, entre outros. A coisa começou a clarear quando tive contato com LPs de Caetano Veloso. Aqueles encartes gigantes reproduziam as letras, que me pareciam significar mais do que eu imaginava quando apenas ouvia as canções. Era mágico acompanhar o canto com aqueles papéis. Às vezes a música acabava e eu me via relendo as letras. Descobri que o texto cumpria a função específica de cobrir a melodia, mas também sobrevivia fora daquilo a que se propunha. Enfim, minha mirada à leitura e à escrita (que eu já havia “cometido”, tendo inclusive vencido um pequeno concurso literário) deu uma guinada. Passei a me interessar por outros cancionistas e até pelos próprios poetas parnasianos. A prosa veio a seguir. Até hoje minha principal referência de escrita é Caetano. Ele não tem culpa alguma (risos).


02. Os primeiros contatos com a poesia se deram, portanto, por intermédio dos livros didáticos, ainda no período escolar: por vezes poemas de autores mais antigos, que não tocavam ainda a sensibilidade do jovem aluno, mas também letras de canção, de compositores populares. Paulo Leminski, em certa ocasião, disse que os grandes poetas que sua geração havia produzido eram Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil. É uma formulação provocativa, que reconhece a qualidade literária desses criadores. As letras de canção educaram a sensibilidade poética de toda uma geração que nasceu e cresceu entre as décadas de 1960 e 1980, inclusive muitos poetas importantes. Você transita entre a poesia do livro e a letra de música. Poderia falar um pouco da atuação nesses dois campos? Há evidentes conexões entre eles, mas um bom poeta não é necessariamente um bom letrista e vice-versa. Há poetas que jamais pensariam em escrever uma letra de música, como há cancionistas que não se vêm escrevendo e publicando poemas. Você se sente igualmente à vontade nesses dois universos criativos?

Existe um emaranhado de diferenças e semelhanças entre a poesia impressa e a letra da canção. A letra, mesmo não sendo literatura no sentido estrito do termo, acaba exigindo um fazer literário também, de métrica e prosódia, além das claras questões sonoras ali envolvidas. Os processos são variados: desde ter um poema musicado (o que demanda apuro do compositor, pois às vezes pode resultar em peças em que a música acaba por não se adequar plenamente ao texto); letrar uma melodia pré-concebida, recurso que mais aprecio, em que há dificuldades várias, mas quando o intento é atingido, costumeiramente a resposta é mais eficaz. Há ainda a composição “a vivo”, na presença do melodista, uma forma que fiz menos, ainda que com boas faturas também. Por não ser músico, me sinto mais à vontade com a realização da poesia impressa (poesia visual ou videopoema), ainda que tenha conseguido fazer parcerias que reputo como bem interessantes.


03. Em muitos trabalhos, você conta com a colaboração de outros artistas. Falamos aqui das canções, que demandam sempre a presença de um parceiro músico, uma vez que tua atuação se dá em exclusivo no plano do texto. Mas há também, como você lembrou, poemas sonorizados, clipoemas, poemas visuais, que pressupõem técnicos de som, fotógrafos, cineastas, artistas gráficos etc. Como surgem essas parcerias? A colaboração desses outros criadores se subordina a ideias prévias que você desenvolve e traz para um dado projeto, ou há um efetivo trabalho de criação conjunta? Vale registrar aqui: essa tua atuação multimídia sempre foi um diferencial. Poderia falar um pouco mais extensamente sobre esse assunto?

Nunca me ative ao gesto da escrita puramente verbal. Sempre me seduziram os outros caminhos que a poesia pode traçar. Afinal, sempre foi assim. A poesia traz em si as potências visuais e sonoras, mesmo que esteja meramente acomodada numa página. A diferença aqui me parece ser a ênfase e a concentração dessa atitude. Equipar de forma funcional as palavras, versos etc., criando regiões fronteiriças mais ou menos borradas de significação e sensibilidade. Os trabalhos que fiz e faço que escorrem para fora do formato livro partiram e tiveram parceiros, circunstâncias e soluções plurais, mas sempre com um modus operandi bem parecido. Em tudo que fiz em termos de vocalização de poemas, sempre defini esse mapa sonoro, seja com arranjo em várias vozes sobrepostas, emplastradas, seja com a utilização e intervenção de sons, ruídos, foleys, samplers etc., contando com a colaboração, claro, de técnicos e produtores. Na seara dos vídeos, sempre faço os roteiros, mapas no caso das animações. Evidentemente, sempre há um diálogo com os profissionais e artistas envolvidos, o que acrescenta elementos, ideias ao plano inicial. A tecnologia disponível naquele momento da feitura e a própria circunstância envolvida em cada caso também acabam contribuindo para a definição das escolhas formais e estilo. No caso das performances/leituras ao vivo, o acaso tem seu papel também. Na parte da visualidade do poema impresso, bem como das capas dos livros, CDs, DVDs, defino muito bem o padrão e as preferências, mesmo que o designer/fotógrafo tenha liberdade para entrar com seu repertório. Em casos raros, deleguei completamente esses trabalhos. Não posso finalizar sem dizer que de nada vale qualquer aparato, mídia, se a palavra não carrega certa intensidade de intenção formal e existencial. Por isso, o termo “multimídia” pode ser enviesado: se de um lado parece expandir o leque de atuação, por outro pode deixar entrever uma especificidade limitante. Em outros termos, prefiro ser chamado de poeta, apenas. 

 

04. Vamos conversar um pouco sobre o último livro, Central de Despachos Nossa Senhora das Graças, que veio a público no final de 2021. Em boa medida, ele dá continuidade aos dois trabalhos anteriores, Evite Permanecer nesta Área (2012) e Hospedaria de Cuidados Paliativos (2016). São livros de fôlego, com muitos poemas, e muitos deles bem mais extensos e prolixos do que os poemas dos livros iniciais, que primavam pela concisão. Central de despachos tem 480 páginas, a grande maioria delas ocupada plenamente pela mancha tipográfica. O volume, por si só, ultrapassa em extensão as obras completas de muitos poetas. Ou seja, você tem escrito muita poesia, num trabalho que, ao que tudo indica, deve ser meio que diário. Num dos poemas do livro, chamou-me a atenção a formulação “time is poetry”, que cito aqui provocativamente fora do texto e contexto. Como você explica as diferenças entre os primeiros e os livros mais recentes? A que se deve essa urgência de muito escrever e de publicar o muito que se escreve? Há leitores para tanta poesia?

Acredito que a minha concisão sempre esteve manchada por uma digital de sujeira formal ou, pelo menos, o conciso nunca foi tão asseado, asséptico assim. O livro-CD-vídeo Única Coisa, de 2000, é construtivista na mesma medida em que tem um caráter de profusão barroquizante. Seja como for, no poema “Briga”, do livro-CD Eu Também, de 2003, existe um aceno para um certo rompimento com uma coisa mais diamantina, reflexo de uma saturação pessoal (e até de algum modo coletiva) em relação a essa intenção de linguagem. O que era indício, embrião, com Evite Permanecer Nesta Área se intensificou. Poemas mais longos, alguns um tanto “despoetizados”, abriram picadas para os dois livros seguintes, Hospedaria de Cuidados Paliativos e Central de Despachos Nossa Senhora das Graças. Não penso que se trate de uma trilogia, mas há uma sinalização de percurso e continuidade consciente. Evite e Hospedaria são extensos, e Central de Despachos ficou ainda maior. Em parte, por ter perpassado o período da pandemia, o que contribuiu para forjar alguma faceta, com questões “quentes”, diárias, em que notícias, fatos flamejavam urgentes e imprescindíveis. Urgente num espectro existencial, mas não como pressa ou desleixo formal e estético, diga-se. O desenvolvimento e a resultante extensão se dão também por conta dos “Extras”. São versões e ênfases diversas em relação ao corpo de poemas principal do livro, em que, longe de emular, parodiam de forma crítica (no caso dos sonetos), questionam o excesso de produção e/ou facilidade na feitura de haicais, poemas visuais, “poemas concretos”, e até as prosas breves (crônicas) que grassam em produções atualmente, tudo pelo viés do sarcasmo e da ironia. A despeito disso, a prosa sempre esteve em meu radar; não acredito na tão propalada distância entre ela e a poesia. Tem coisas que, principalmente nos “Extras”, podem parecer desconjuntadas, descalibradas, mas foram pensadas assim ou em algum caso a forma me seduziu e me convenceu que assim fossem. Percebi uma necessidade candente em adequar o assunto ao corte do poeta, pois um certo “espírito do tempo” exigia tal corpulência. Um elenco de paisagens ao feitio modernista de reportagem urbana, bem como ready-mades jornalísticos compuseram boa parte da produção. Talvez tenha querido com tudo isso uma “concisão selvagem”, nada me impedindo de retomar ou reelaborar a linguagem num próximo trabalho. Não fiz a contabilidade dos poemas com relação ao período de tempo, mas acho que não chega a uma página semanal. Fiz muita coisa, mas muito ficou de fora também. Achei pertinente, ainda que como recorte a um poema, você pinçar a paródia que fiz da frase de Benjamim Franklin, que Ronald Reagan usou como ventríloquo, time is poetry. Não tenho ingenuidade em antagonizar dinheiro e poesia, mas me parece sintomático num momento em que muito se produz, mas praticamente inexiste mercado para a poesia. Talvez nunca tenha tido. E a poesia chegou até aqui. E vai nos ultrapassar quando cairmos mortos. Por isso, a poesia não devia ter essa obrigação mercadológica, devia restar somente a cumplicidade estética e afetiva. Então, por que não ser ainda mais arrojada, diversa, colada ou descolada da realidade? Há leitores (efetivos) de poesia? Onde tem mais, em Sortelha ou em Los Angeles? No limite, em qual número? Gosto de crer que o verdadeiro leitor, amante mesmo incondicional de poesia, não pode se guiar pelo número de versos e quantidade de poemas num livro. Afinal, de que forma o poeta deveria continuar mediando, buscando, lutando? Por que não ousar propor outras direções? Um cinéfilo não pauta sua audiência pela duração de um filme. Canção de mais de 3 minutos embarga a audição? Um álbum duplo não tem mais espaço? Alberto Giacometti e Ron Mueck rivalizam suas esculturas pelo tamanho? Há muitos livrinhos de poesia que não param em pé de tão finos e são intragáveis. Esse não me parece ser o ponto. Se não temos leitores a fim, capazes para poemas ou livros longos, penso então que os exclusivos leitores de poemas curtos não cumprem toda a empreitada a que um leitor devia se propor. Enfim, ouso trocar de asa em pleno voo, em plena queda. Os leitores deviam tentar algo assim.

 











05. A multiplicidade de formas e estilos é clara. No texto de apresentação que escrevi para Central de Despachos, usei a expressão “um livro de muitos livros” a fim de caracterizá-lo. Na primeira parte, com exceção de alguns poucos textos muito curtos, de caráter epigramático, os poemas se revelam mais desenvoltos, ocupando página inteira ou mais de uma página, em versos livres, por vezes longos, mas de ritmo duro, pouco musicais, alguns inclusive bem prosaicos. O contraste formal maior se dá relativamente aos “Extras”, que compõem praticamente mais da metade do livro, ao contrário do que a palavra poderia fazer supor. Não se trata, portanto, simplesmente de acréscimos, em apêndice, ao que seria a parte principal, mas algo que acaba por adquirir um estatuto igualmente importante dentro do todo. Ali, como você disse, encontramos haicais, sonetos, poemas em prosa, poemas visuais de diversa natureza etc. Como você também sublinhou (e isso fica claro de imediato), trata-se de apropriações, de jogos provocativos com formas muito utilizadas (e por vezes banalizadas), sejam tradicionais ou mais recentes. Aparentemente, há vários poetas por detrás do poeta. Ou um obsessivo serial killer de formas poéticas. Paródia, sarcasmo, ironia são elementos que estão presentes aí, mas também muito fortemente na primeira parte. E assim, por detrás da variedade formal (e temática), verifica-se, em contraste, uma clara “unidade de tom”. Percebo em Central de Despachos (e na tua obra como um todo, vale dizer), permeando o intuito crítico, uma pegada ao mesmo tempo zombeteira e amarga, por detrás da qual se manifesta cansaço, fastio, desencanto diante do mundo contemporâneo. Você concorda com isso? Não há mais espaço para afetos um pouco mais ternos, algum consolo mesmo que estético, ou rasgos de utopia?

A mudança, já citada, que fiz na linguagem a partir dos primeiros trabalhos até a feitura dos últimos três livros, como disse, ressalta propostas e procedimentos que desde a juvenília apareciam aqui e ali. Algumas soluções levaram a panoramas de um timbre caraterístico – no sentido de uma distinção rítmica que me parece afastar as palavras e os versos da mera coloquialidade – em contraponto a estruturas melódicas mais aparentes. Contudo, o ritmo me parece vigoroso dentro desse novo espectro. “Extras” não é coadjuvante. A própria quantidade de seções aí presentes dá a visão de sua premência. Acaba que há, sim, alguns poetas dentro do mesmo poeta a partir do momento em que assino os poemas. Tem também essa intenção orgânica que você levanta, não só no corpo da primeira parte do livro, mas percorrendo cada seção dos “Extras”. O termo “apropriação” deve ser apreendido como um modo momentâneo, sem apego, no caso das formas fixas, ainda que alguns autores ali referidos sejam seminais em minhas leituras e interesses. Não deixa de ser uma construção via implosão. Como também já disse, penso que foquei na harmonia entre corpo e alma no que tange à condição assunto/molde formal. Enfim, a preocupação existencial, de sobrevivência até, era imprescindível. Não se trata de se engajar em alguma coisa, alguma causa, empunhar bandeiras, mas seria estranho e até irresponsável deixar a poesia passar incólume frente a certas demandas atuais, sejam nacionais ou internacionais. Tenho reserva de poesia, substrato lírico, assim penso que numa próxima empreitada posso mover o timão para outro plano. O “inutensílio” (aqui segundo a formulação de Leminski e pelo uso recorrente em Manoel de Barros, em que o objeto poético se basta em si, descartando e abrindo mão, muitas vezes, se não de todo, de aspectos éticos, políticos e sociais) não abandona jamais a minha poesia, mas tem épocas em que a flama do momento deve ter um acento ainda maior. A utopia coexiste sempre. É perene. Mas o quadro atual é tenso, horrendo. Falando em utopia, além de desejar um mundo mais nuançado, harmonioso, justo, solidário, com mais tempo livre, menos metas meramente dinheiristas, gostaria de ter feito, sobretudo em Central de Despachos, algo que tenha dado conta do calor do período e também sobreviva para depois disso. Se isso ocorrer, a validação estética estará consumada. A vida simplesmente não existe sem a linguagem. 

 

06. O “olhar” voltado para as coisas do mundo contemporâneo (do caos da urbe à babel de imagens e vozes na internet) marca muito, a meu ver, tua poesia. As imagens proliferam e se encadeiam, as palavras querem dar concreção a cenas, quadros, lances, falas, personagens que o poeta flagra à sua frente (seja nas ruas, seja nas redes, seja nas páginas dos livros, ou em outros meios). Em boa medida, você atualiza o flâneur baudelairiano, aquele sujeito errante que caminha em disponibilidade pela cidade observando e registrando em detalhes o que acontece (cidade que é também agora uma malha complexa de pessoas em conexão virtual). Em “A Poesia se Escondendo pelos Cantos” aparece uma figura feminina que poderia remeter àquela do poema “A uma Passante”, de Baudelaire, em outro contexto, evidentemente, marcado pelo “cansaço” ao qual já me referi. No teu poema, “a moça saca não a cena / mas o smart da bolsa / e dá um like”, desatenta ao que acontece ao redor e ao olhar do poeta, que, por sua vez, “olha tenta se embaraça”. Como consequência, “a poesia parece virar a cara / e boceja”.

São vários os poemas em que o olhar captura (de modo cru) o entorno (igualmente cru). Cito, por exemplo, o segmento inicial de “Macumba Overdub”: “A bosta fresca do mendigo / ainda fumega próxima do meio-fio / a companheira dele lava a buceta / na água que corre no leito do mesmo meio-fio / um quase senhor mas jovem endividado e povoado de feridas / joga uma bituca de cigarro / um cachorro cheira uma lata de cerveja levemente amassada / com olhos vermelhos o hotel de alta rotatividade / ainda se mantém aberto / o escapamento de uma betoneira incensa a calçada / dois homens escoram uma palmeira / em frente de um novo empreendimento / travestis destilam veneno sensual de seus exoesqueletos esotéricos de Eros e Exu (...)”. Aqui, o registro surge em chave realista/naturalista, mas muitas vezes pode lembrar a “escrita automática” surrealista, como em “Cauda de Rio”: “agora que tudo parou moinho sem vento hélices dois braços / cruzados temos remos dois braços enfermos e a água na / gaveta de terra chuva batina pérola cristal escorre pelo altar aos / pés da nuvem até o altar dos pés de um caminhão leva uma nuvem / separada em sacas de algodão esse vento frio face de vidro / cortante espadas de raio duelam com garras de corvos céu / caminho da nuvem três caças passam alinhados soltando tiras de / Adidas as velas ossatura de esqueleto guiam a nau o fino veio do / coração de tua vulva o sol não descansa de si o sentido pode / esperar esqueletos de néon sabiá peita orvalho pia e derruba a / grua que cai de soslaio na madrugada definitiva o cheiro agridoce / (...)”. Esse tipo de “encadeamento vertiginoso” também se projeta no âmbito das referências culturais (literatura, cinema, música, publicidade, internet/redes sociais etc.), em muitos e muitos textos. Em “Slide-Caverna” lemos: “Voltarei a Voltaire / tirarei bolor / de Baudelaire / passarei pano / em Lacan / olharei de novo / o eu em Freud / soarei outra vez / o alarme de Mallarmè / (...)”, e por aí segue, elencando nomes cultuados. São autores de ressonância ampla. Mas o poema “maCWmBa” prima pela referência a nomes, no caso, curitibanos, e deve ser meio opaco para quem não detenha certas chaves de leitura: “(...) / (bigode polaco com seus pelos de pincel grafa um haiku) / (Maria Bueno esfinge no Municipal Inácio Diniz) / (Helena com olhos mais azuis que o céu de cu que imita cinza) / (Bueno a cavalo paraguayo marafona Guaratuba e tanka) / (cebola bolacha meia dúzia de vozes encrenca Karam) / macumba falcatrua – trabalho de moça conto de Dalton / num canto do Largo – entre a Romário e o Alemão / (...)”.

Você poderia falar um pouco mais sobre teu processo de escrita?

Baudelaire? É possível esse paralelo, apesar de não ter sido totalmente intencional, mas como Baudelaire sempre esteve na minha mira, a “visita” da cidade parece familiar, até porque já havia passagens e paisagens em Evite, que é bastante “externo”, o que se interrompe um pouco, com certo ar ermitão, em Hospedaria, e volta de maneira mais intensa com Central. Referências artísticas, de fato, se engolfaram a elementos de rede social, por exemplo, o que ajuda a imprimir, a meu ver, uma fisionomia de urgência (instrumental) e cinismo (estrutural) ao mesmo tempo. Surrealismo? Pode ocorrer como nuances, quase na íntegra de poemas, como no destacado “Cauda de Rio”, ou como elemento construtivo em versos e trechos pontuais em outros casos. A origem dessa faceta, uma vez que nunca fui muito adepto do surrealismo “puro”, talvez tenha vindo de forma intrincada por meio do primeiro João Cabral, de Murilo Mendes, mas antes de Cesar Vallejo, que talvez seja o verdadeiro fundador dessa escrita, mesmo que não de forma totalmente consciente. Se não pela totalidade, mas em larga medida, essa profusão quase convulsionada serve como certo anteparo a um cinismo galopante. Hoje, muito se produz, mas com qualidade discutível. Há certo espaço para o escoamento do que se produz, mesmo que com mínima crítica, mas tudo operado com caráter uniforme, monocórdico, quase sempre padronizado em termos de temas e linguagem. Um senso comum, por mais que não de forma consciente, parece almejar um controle, uma ânsia de domesticar, de manter tudo mais ou menos inofensivo. Digamos, uma prática tácita entre grande parte dos leitores e poetas, e também de alguns editores. Um facilitador de tudo isso é a própria facilidade do fazer poético em si, não quando em casos em que há alta fatura final, obviamente, mas me refiro ao fazer da poesia, puro e simples. O publicar, publicar. Ninguém canta ópera se não estudar. A poesia oferece esses gumes. O preço e a consequência muitas vezes são altíssimos. A despeito da meta atual, sempre me interessei por muitas frentes em simultâneo, com misturas em princípio inconciliáveis, mas penso que desde minha formação escolar já havia esse terreno mais ou menos arado para poder exercitar tais composições. Se fizermos um recorte de boa parte do que fez Torquato Neto, para nos atermos a um nome, vamos nos deparar com colagens e afins. Então, não vejo nada de tão exótico nisso, e apesar de haver um direcionamento, não há quase nada de exclusivo, excepcional. Agora, evidente que o resultado pode e deve ser diverso e eficaz. 

 











08. Os títulos dos poemas chamam bastante a atenção. Em alguns casos, eles são porta importante de entrada para o próprio texto: o poema meio que se ilumina a partir do título. Por vezes, parecem ter vínculos distantes, ou mesmo nenhum vínculo mais evidente. Muitas vezes, você parece provocar o leitor, exigindo que ele preencha a lacuna existente entre título e poema. Um caso claro para mim é “O Mundo Só Acaba Quando Todo Mundo Ler Ulisses”, que, num primeiro lance, não parece ter conexão nenhuma com os versos que vêm a seguir. Poderia comentar um pouco a escolha dos títulos? Mais: poderia comentar o nome do livro em específico? A propósito de “despachos”, há vários poemas que têm a palavra “macumba” no título. E, se “Nossa Senhora das Graças” pode referir-se, num primeiro instante, ao universo religioso cristão, há um conhecido hospital em Curitiba com esse nome. Que “central”, afinal, é essa?

Títulos sempre são uma questão a ser levada em conta. Têm certo poder de sedução. Podem despertar ou até inibir interesses. Não gosto de títulos óbvios, mesmo considerando que às vezes não há saída. O Francisco Alvim tem uns ótimos, em que o nome do poema completa o sentido do texto, é parte integrante, mas servem para ele, e ainda assim em textos curtíssimos. A minha experiência não tem propriamente um método. Cada poema meio que se batiza quase por vontade própria. Há sim esses casos mais singulares, com certo extremismo, aos quais você se refere. Em Central houve a intenção deliberada de criar uma tensão, um choque, uma estranheza, propícia ao proposto no corpo dos poemas do livro. Os “despachos”, “macumbas” foram feitos cumprindo um eixo que vai se formando e percorre o livro em várias ocorrências, marcando ritmo e conceito. Central de Despachos Nossa Senhora das Graças é um (quase) ready-made. Um despachante próximo de minha última residência em São Paulo trazia em sua placa o nome Agência de Despachos Nossa Senhora das Graças. Achei Central mais sonoro e fluido. O livro começa aí. 

 

09. Ao longo de nossa conversa, você se referiu a alguns autores, a começar por Caetano Veloso, presença já no período formativo. No livro, há uma grande profusão de nomes. Gostaria que você falasse um pouco mais dos autores que são referência para você, tanto aqueles que foram importantes no processo de aprendizagem, quanto aqueles aos quais você retorna regularmente. E, para encerrar, gostaria de saber se você acompanha de perto a cena da poesia brasileira recente e como você situaria teu trabalho dentro dessa mesma cena.

Os autores da fase inicial são os poetas-compositores da música popular brasileira, a geração marginal, os concretos, os beatniks, os cantautores interncionais, como Bob Dylan, Leonard Cohen, Nick Cave, Lou Reed, entre outros. As referências de ontem e que serão para sempre podem não se manifestar como influência escancarada, mas estão dentro da própria corrente sanguínea do poeta: Herberto Helder, Walt Whitman, Nicanor Parra, Roberto Bolaño, Raul Bopp, Carlos Drummond, Oswald de Andrade, Gerard Manley Hopkins, Dante, Pessoa, e tantos mais que poderia mencionar. Além, claro, de uma possível extensa lista nas áreas das artes plásticas e do cinema. Acompanho a poesia brasileira com certo desinteresse, e diria com preguiça até. Tirando alguns poetas, a imensa maioria se enquadra no que já me reportei acima. A própria causa identitária, fundamental em sua essência, mas cheia de oportunismos, de fácil adesão e resultados estéticos acríticos, acaba como que suplantando em parte toda uma produção. O mesmo vale para um frouxo artesanato, ou ainda para fórmulas já muito repisadas, o que também contribuiu muito para essa situação. Tento fazer algo diverso, com seriedade, honestidade e franqueza, sem conchavos, turmas, nem troca de favores.






Poemas de Central de Despachos Nossa Senhora das Graças

 

 

A POESIA SE ESCONDENDO PELOS CANTOS

  

Uma perna média

parte de uma asa

e o próprio brilho da água

uma garota passa rente

a uma poça d’água

escura suja inflamada

mas que reflete e deixa entrever

a panturrilha depilada

e um salto alto vermelho

um avião voa raso e musica o plano

a moça saca não a cena

mas o smart da bolsa

e dá um like

numa foto de alguém numa ilha

num dia de sol e festa

o poeta olha tenta se embaraça

a poesia parece virar a cara

e boceja

 

 

 

CONTAGEM REGRESSIVA

 

Take Six

Quinteto Violado

Quarteto em Cy

Zimbo Trio

Duofel

Primal Scream

 

 


BLACKBERRY NÃO É AMORA PRETA

  

Obama foi um genuíno

homem-bomba

não o abnegado

o autoiludido

autoindulgente

rapaz de ego introjetado

em meio ao rebanho de gado camelo

Obama é o pragmático

que chora na hora certa

que toca o instrumento cardíaco

do povo carente

é o impostor sem compostura

o canastrão sem censura

o seu BlackBerry

não tem nada do sumo da amora preta

seu suco é ralo e rola fácil pela festa líquida

nada de Globetrotters Ali Freeman King

nada de Pantera Negra

nada de Mandela

adotou o discurso em uso

por alguns rappers que estupram

a inteligência do pano social

espocando espumante no capô

de maseratis e mustangs

mas como muitos pobres

querem deixar de ser taxados de vilões sem o ser

e se esforçam pra virar bandidos

institucionalizados pelo poder

via esporte via arte via passaporte

Obama fez da arte da guerra

a guerra como showbiz

e como mau ator fingiu

encenar até a pele que o vestia

grande parte do mundo

blacks & whites inclusive

compraram o ingresso

e veio o Nobel da Paz

o que prometia poderia ter sido

um imponente sol negro

virou um pálido solo em Oslo

 

 

 

O SEGREDO DA COCA-COLA

 

Durante mas principalmente

depois de as bolhas de gás

estourarem entre

a boca e o nariz

vem à mente uma canela

não em pau mas a em pó

uma certa baunilha se intromete

mas fraca não convence

e se dispersa

um chocolate se insinua

mas não me engano

um café pede passagem

mas não alcança

até a noz da cola não chega na própria nota

o caramelo lembrando mais o cão

do que o corante corre

da outra em pó nem pensar

puro cloro cloridrato batizado com tranqueira

pra variar Décio estava certo

o aroma quase pende à cloaca

mas afinando um pouco o olfato

fica claro que no fundo

o mundo sabe

é um fato

a Coca-Cola tem gosto de cu

 

 

 

PODA

 

O comerciante de plantas

diz que as folhas de baixo

podem e até devem amarelar.

Já as de cima, quando isso ocorre,

é sinal de alguma falta: água ou claridade

(ausência de alguém, algo de clareza).

Devemos, ainda, evitar excessos:

vaso não é charco, avisa; sol demais, cega, alerta.

Cuidado, demasiado apego, ciúme (mau-olhado?).

Não sei o que houve,

sua linguagem tuberculosa me suplantou –

rizoma que ri de mim.

Conforme indicado, corto as ditas, mas no ímpeto,

erro uma haste,

acerto outra, sadia.

Não havia notado que se tratava de uma forquilha,

embaralho mãos e tesoura na bifurcação: deslize.

Aproximo a sensação de uma dica de Virgílio,

chego num lance de Ronaldo, o drible dentro do drible.

 

 

 

MACUMBA OVERDUB

 

A bosta fresca do mendigo

ainda fumega próxima do meio-fio

a companheira dele lava a buceta

na água que corre no leito do mesmo meio-fio

um quase senhor mas jovem endividado e povoado de feridas

joga uma bituca de cigarro

um cachorro cheira uma lata de cerveja levemente amassada

com olhos vermelhos o hotel de alta rotatividade

ainda se mantém aberto

o escapamento de uma betoneira incensa a calçada

dois homens escoram uma palmeira

em frente de um novo empreendimento

travestis destilam veneno sensual de seus exoesqueletos

esotéricos de Eros e Exu

pastéis gordurosos chegam e ensopam guardanapos na estufa

baratas drenam o riso nervoso dos sapatos que passam

um rato risca o chão e some na boca de lobo

de um outro bueiro um urubu volta ao céu

uma pomba gira

o santo baixa

um altar se oferta

um ciclista muito perfumado passa veloz

reclama de alguém que atrapalha a ciclofaixa

lembro que não tenho tatuagens

 

 

 

MARINHA

  

tua tanga quase sangra minha vista

deixa ver a cor e a polpa da bunda

duas tetas como setas dão a pista

 

as omoplatas são anzol e isca

as clavículas pérgolas de uva

volto à tanga o cofrinho pisca

 

vira desvira na areia na canga

assa na tarde o verso de bruços

pinta na face a frente do buço

minha fissura na pintura da anca

 

sorri com fúria beleza dentuça

harmoniza e gruda a estria

e a celulite com mão e astuta

luva a canção letra e melodia

 

 

 

O MUNDO SÓ ACABA QUANDO TODO MUNDO LER O ULISSES

  

William Bonner

causa alvoroço

nas redes ao voltar

de barba das férias

pensei em começar

um poema assim

ou usar isso como título

pra outra coisa

deixar anotado

pra outra ocasião ainda

mas bem que Bonner

não precisava voltar das férias

bem que não precisava da barba

bem que as redes

bem que

esqueci de anotar

que não aguento

aberturas de jogos

 

 

 

AS MANCHAS NO MÓVEL SUMIRAM (OU AS ESQUECI)

 

é mesmo estranha a vida

agora mesmo o vento uiva

pra ninguém

algumas folhas rolam pelo chão

mas não sabem o que dizer

alguns dos piores amigos

foram os que mais me ajudaram

os que pareciam melhores

os bons de coração

quase nada fizeram

 

a vida é assim carente

nos toma a frente a toda hora

fazendo charme de difícil

o que fica acaba

que é o que deve ser feito

alguns dos melhores amigos pularam

com o carro em movimento

outros que nem pareciam tão ruins

acenavam com o polegar direito

à beira do acostamento

 

eu não sei escrever

eu não sei esquecer

 

 

 

Amarildo Anzolin e Marcelo Sandmann – fev 2022

 

 


 











10 poemas de João Luís Barreto Guimarães

  João Luís Barreto Guimarães nasceu na cidade do Porto, a 3 de junho de 1969. É poeta e tradutor, com diversos títulos publicados em Portug...