Amarildo Anzolin Foto: Bruno Tadashi |
Amarildo Anzolin nasceu em Curitiba em
1970. É poeta, letrista, redator, revisor, roteirista, radialista, performer,
ministrante de oficinas de escrita e produtor cultural. Publicou até o momento
os seguintes trabalhos: Co-Lapso
(Ócios do Ofício, 1995), Igual (Ócios
do Ofício, 1998), Única Coisa
(Livro-CD-VHS – Fundação Cultural de Curitiba, 2000), Eu Também (Livro-CD – Editora Medusa, 2003), Cânone (DVD – Fundação Cultural de Curitiba, 2007), Evite Permanecer Nesta Área (Terracota,
2012), Hospedaria de Cuidados Paliativos
(Água Quente, 2016) e Central de
Despachos Nossa Senhora das Graças (Água Quente, 2021). Para este último,
lançado no final de 2021, escrevi o texto de apresentação, a convite do autor.
Sobre o livro, bem como sobre sua trajetória, tivemos a conversa que se lê a
seguir. Ao final da entrevista, reproduzo alguns poemas, que ilustram o que se
discutiu.
Central de Despachos Nossa Senhora das Graças |
01. Como você chegou à poesia?
Nas primeiras séries da escola, mesmo os “Albertos de Oliveira” já mostravam que a poesia tinha alguma coisa diversa dos demais textos e artes. Na época não entendia, depois fui travar contato com poetas mais interessantes para uma criança quase adolescente. Mas me parece até hoje um contrassenso as aulas começarem com clássicos e depois chegarem nos contemporâneos. Os livros de linguagem traziam impressas letras de canções de Chico Buarque, entre outros. A coisa começou a clarear quando tive contato com LPs de Caetano Veloso. Aqueles encartes gigantes reproduziam as letras, que me pareciam significar mais do que eu imaginava quando apenas ouvia as canções. Era mágico acompanhar o canto com aqueles papéis. Às vezes a música acabava e eu me via relendo as letras. Descobri que o texto cumpria a função específica de cobrir a melodia, mas também sobrevivia fora daquilo a que se propunha. Enfim, minha mirada à leitura e à escrita (que eu já havia “cometido”, tendo inclusive vencido um pequeno concurso literário) deu uma guinada. Passei a me interessar por outros cancionistas e até pelos próprios poetas parnasianos. A prosa veio a seguir. Até hoje minha principal referência de escrita é Caetano. Ele não tem culpa alguma (risos).
02. Os primeiros contatos com a poesia se deram, portanto, por intermédio dos livros didáticos, ainda no período escolar: por vezes poemas de autores mais antigos, que não tocavam ainda a sensibilidade do jovem aluno, mas também letras de canção, de compositores populares. Paulo Leminski, em certa ocasião, disse que os grandes poetas que sua geração havia produzido eram Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil. É uma formulação provocativa, que reconhece a qualidade literária desses criadores. As letras de canção educaram a sensibilidade poética de toda uma geração que nasceu e cresceu entre as décadas de 1960 e 1980, inclusive muitos poetas importantes. Você transita entre a poesia do livro e a letra de música. Poderia falar um pouco da atuação nesses dois campos? Há evidentes conexões entre eles, mas um bom poeta não é necessariamente um bom letrista e vice-versa. Há poetas que jamais pensariam em escrever uma letra de música, como há cancionistas que não se vêm escrevendo e publicando poemas. Você se sente igualmente à vontade nesses dois universos criativos?
Existe um emaranhado de diferenças e semelhanças entre a poesia impressa e a letra da canção. A letra, mesmo não sendo literatura no sentido estrito do termo, acaba exigindo um fazer literário também, de métrica e prosódia, além das claras questões sonoras ali envolvidas. Os processos são variados: desde ter um poema musicado (o que demanda apuro do compositor, pois às vezes pode resultar em peças em que a música acaba por não se adequar plenamente ao texto); letrar uma melodia pré-concebida, recurso que mais aprecio, em que há dificuldades várias, mas quando o intento é atingido, costumeiramente a resposta é mais eficaz. Há ainda a composição “a vivo”, na presença do melodista, uma forma que fiz menos, ainda que com boas faturas também. Por não ser músico, me sinto mais à vontade com a realização da poesia impressa (poesia visual ou videopoema), ainda que tenha conseguido fazer parcerias que reputo como bem interessantes.
03. Em muitos trabalhos, você conta com a colaboração de outros artistas. Falamos aqui das canções, que demandam sempre a presença de um parceiro músico, uma vez que tua atuação se dá em exclusivo no plano do texto. Mas há também, como você lembrou, poemas sonorizados, clipoemas, poemas visuais, que pressupõem técnicos de som, fotógrafos, cineastas, artistas gráficos etc. Como surgem essas parcerias? A colaboração desses outros criadores se subordina a ideias prévias que você desenvolve e traz para um dado projeto, ou há um efetivo trabalho de criação conjunta? Vale registrar aqui: essa tua atuação multimídia sempre foi um diferencial. Poderia falar um pouco mais extensamente sobre esse assunto?
Nunca me ative ao gesto da escrita
puramente verbal. Sempre me seduziram os outros caminhos que a poesia pode
traçar. Afinal, sempre foi assim. A poesia traz em si as potências visuais e
sonoras, mesmo que esteja meramente acomodada numa página. A diferença aqui me
parece ser a ênfase e a concentração dessa atitude. Equipar de forma funcional
as palavras, versos etc., criando regiões fronteiriças mais ou menos borradas
de significação e sensibilidade. Os trabalhos que fiz e faço que escorrem para
fora do formato livro partiram e tiveram parceiros, circunstâncias e soluções
plurais, mas sempre com um modus operandi
bem parecido. Em tudo que fiz em termos de vocalização de poemas, sempre defini
esse mapa sonoro, seja com arranjo em várias vozes sobrepostas, emplastradas,
seja com a utilização e intervenção de sons, ruídos, foleys, samplers etc.,
contando com a colaboração, claro, de técnicos e produtores. Na seara dos
vídeos, sempre faço os roteiros, mapas no caso das animações. Evidentemente,
sempre há um diálogo com os profissionais e artistas envolvidos, o que
acrescenta elementos, ideias ao plano inicial. A tecnologia disponível naquele
momento da feitura e a própria circunstância envolvida em cada caso também
acabam contribuindo para a definição das escolhas formais e estilo. No caso das
performances/leituras ao vivo, o acaso tem seu papel também. Na parte da
visualidade do poema impresso, bem como das capas dos livros, CDs, DVDs, defino
muito bem o padrão e as preferências, mesmo que o designer/fotógrafo tenha liberdade para entrar com seu repertório.
Em casos raros, deleguei completamente esses trabalhos. Não posso finalizar sem
dizer que de nada vale qualquer aparato, mídia, se a palavra não carrega certa
intensidade de intenção formal e existencial. Por isso, o termo “multimídia”
pode ser enviesado: se de um lado parece expandir o leque de atuação, por outro
pode deixar entrever uma especificidade limitante. Em outros termos, prefiro
ser chamado de poeta, apenas.
04. Vamos conversar um pouco sobre o último livro, Central de Despachos Nossa Senhora das Graças, que veio a público no final de 2021. Em boa medida, ele dá continuidade aos dois trabalhos anteriores, Evite Permanecer nesta Área (2012) e Hospedaria de Cuidados Paliativos (2016). São livros de fôlego, com muitos poemas, e muitos deles bem mais extensos e prolixos do que os poemas dos livros iniciais, que primavam pela concisão. Central de despachos tem 480 páginas, a grande maioria delas ocupada plenamente pela mancha tipográfica. O volume, por si só, ultrapassa em extensão as obras completas de muitos poetas. Ou seja, você tem escrito muita poesia, num trabalho que, ao que tudo indica, deve ser meio que diário. Num dos poemas do livro, chamou-me a atenção a formulação “time is poetry”, que cito aqui provocativamente fora do texto e contexto. Como você explica as diferenças entre os primeiros e os livros mais recentes? A que se deve essa urgência de muito escrever e de publicar o muito que se escreve? Há leitores para tanta poesia?
Acredito que a minha concisão sempre
esteve manchada por uma digital de sujeira formal ou, pelo menos, o conciso
nunca foi tão asseado, asséptico assim. O livro-CD-vídeo Única Coisa, de 2000, é construtivista na mesma medida em que tem
um caráter de profusão barroquizante. Seja como for, no poema “Briga”, do
livro-CD Eu Também, de 2003, existe
um aceno para um certo rompimento com uma coisa mais diamantina, reflexo de uma
saturação pessoal (e até de algum modo coletiva) em relação a essa intenção de
linguagem. O que era indício, embrião, com Evite
Permanecer Nesta Área se intensificou. Poemas mais longos, alguns um tanto
“despoetizados”, abriram picadas para os dois livros seguintes, Hospedaria de Cuidados Paliativos e Central de Despachos Nossa Senhora das
Graças. Não penso que se trate de uma trilogia, mas há uma sinalização de
percurso e continuidade consciente. Evite
e Hospedaria são extensos, e Central de Despachos ficou ainda maior.
Em parte, por ter perpassado o período da pandemia, o que contribuiu para forjar
alguma faceta, com questões “quentes”, diárias, em que notícias, fatos
flamejavam urgentes e imprescindíveis. Urgente num espectro existencial, mas não
como pressa ou desleixo formal e estético, diga-se. O desenvolvimento e a
resultante extensão se dão também por conta dos “Extras”. São versões e ênfases
diversas em relação ao corpo de poemas principal do livro, em que, longe de
emular, parodiam de forma crítica (no caso dos sonetos), questionam o excesso
de produção e/ou facilidade na feitura de haicais, poemas visuais, “poemas
concretos”, e até as prosas breves (crônicas) que grassam em produções
atualmente, tudo pelo viés do sarcasmo e da ironia. A despeito disso, a prosa
sempre esteve em meu radar; não acredito na tão propalada distância entre ela e
a poesia. Tem coisas que, principalmente nos “Extras”, podem parecer
desconjuntadas, descalibradas, mas foram pensadas assim ou em algum caso a
forma me seduziu e me convenceu que assim fossem. Percebi uma necessidade
candente em adequar o assunto ao corte do poeta, pois um certo “espírito do
tempo” exigia tal corpulência. Um elenco de paisagens ao feitio modernista de
reportagem urbana, bem como ready-mades
jornalísticos compuseram boa parte da produção. Talvez tenha querido com tudo
isso uma “concisão selvagem”, nada me impedindo de retomar ou reelaborar a
linguagem num próximo trabalho. Não fiz a contabilidade dos poemas com relação
ao período de tempo, mas acho que não chega a uma página semanal. Fiz muita
coisa, mas muito ficou de fora também. Achei pertinente, ainda que como recorte
a um poema, você pinçar a paródia que fiz da frase de Benjamim Franklin, que
Ronald Reagan usou como ventríloquo, time
is poetry. Não tenho ingenuidade em antagonizar dinheiro e poesia, mas me
parece sintomático num momento em que muito se produz, mas praticamente
inexiste mercado para a poesia. Talvez nunca tenha tido. E a poesia chegou até
aqui. E vai nos ultrapassar quando cairmos mortos. Por isso, a poesia não devia
ter essa obrigação mercadológica, devia restar somente a cumplicidade estética
e afetiva. Então, por que não ser ainda mais arrojada, diversa, colada ou
descolada da realidade? Há leitores (efetivos) de poesia? Onde tem mais, em
Sortelha ou em Los Angeles? No limite, em qual número? Gosto de crer que o
verdadeiro leitor, amante mesmo incondicional de poesia, não pode se guiar pelo
número de versos e quantidade de poemas num livro. Afinal, de que forma o poeta
deveria continuar mediando, buscando, lutando? Por que não ousar propor outras
direções? Um cinéfilo não pauta sua audiência pela duração de um filme. Canção
de mais de 3 minutos embarga a audição? Um álbum duplo não tem mais espaço?
Alberto Giacometti e Ron Mueck rivalizam suas esculturas pelo tamanho? Há
muitos livrinhos de poesia que não param em pé de tão finos e são intragáveis.
Esse não me parece ser o ponto. Se não temos leitores a fim, capazes para
poemas ou livros longos, penso então que os exclusivos leitores de poemas
curtos não cumprem toda a empreitada a que um leitor devia se propor. Enfim,
ouso trocar de asa em pleno voo, em plena queda. Os leitores deviam tentar algo
assim.
05. A multiplicidade de formas e estilos é clara. No texto de apresentação que escrevi para Central de Despachos, usei a expressão “um livro de muitos livros” a fim de caracterizá-lo. Na primeira parte, com exceção de alguns poucos textos muito curtos, de caráter epigramático, os poemas se revelam mais desenvoltos, ocupando página inteira ou mais de uma página, em versos livres, por vezes longos, mas de ritmo duro, pouco musicais, alguns inclusive bem prosaicos. O contraste formal maior se dá relativamente aos “Extras”, que compõem praticamente mais da metade do livro, ao contrário do que a palavra poderia fazer supor. Não se trata, portanto, simplesmente de acréscimos, em apêndice, ao que seria a parte principal, mas algo que acaba por adquirir um estatuto igualmente importante dentro do todo. Ali, como você disse, encontramos haicais, sonetos, poemas em prosa, poemas visuais de diversa natureza etc. Como você também sublinhou (e isso fica claro de imediato), trata-se de apropriações, de jogos provocativos com formas muito utilizadas (e por vezes banalizadas), sejam tradicionais ou mais recentes. Aparentemente, há vários poetas por detrás do poeta. Ou um obsessivo serial killer de formas poéticas. Paródia, sarcasmo, ironia são elementos que estão presentes aí, mas também muito fortemente na primeira parte. E assim, por detrás da variedade formal (e temática), verifica-se, em contraste, uma clara “unidade de tom”. Percebo em Central de Despachos (e na tua obra como um todo, vale dizer), permeando o intuito crítico, uma pegada ao mesmo tempo zombeteira e amarga, por detrás da qual se manifesta cansaço, fastio, desencanto diante do mundo contemporâneo. Você concorda com isso? Não há mais espaço para afetos um pouco mais ternos, algum consolo mesmo que estético, ou rasgos de utopia?
A mudança, já citada, que fiz na
linguagem a partir dos primeiros trabalhos até a feitura dos últimos três
livros, como disse, ressalta propostas e procedimentos que desde a juvenília
apareciam aqui e ali. Algumas soluções levaram a panoramas de um timbre
caraterístico – no sentido de uma distinção rítmica que me parece afastar as
palavras e os versos da mera coloquialidade – em contraponto a estruturas
melódicas mais aparentes. Contudo, o ritmo me parece vigoroso dentro desse novo
espectro. “Extras” não é coadjuvante. A própria quantidade de seções aí
presentes dá a visão de sua premência. Acaba que há, sim, alguns poetas dentro
do mesmo poeta a partir do momento em que assino os poemas. Tem também essa
intenção orgânica que você levanta, não só no corpo da primeira parte do livro,
mas percorrendo cada seção dos “Extras”. O termo “apropriação” deve ser apreendido
como um modo momentâneo, sem apego, no caso das formas fixas, ainda que alguns
autores ali referidos sejam seminais em minhas leituras e interesses. Não deixa
de ser uma construção via implosão. Como também já disse, penso que foquei na
harmonia entre corpo e alma no que tange à condição assunto/molde formal.
Enfim, a preocupação existencial, de sobrevivência até, era imprescindível. Não
se trata de se engajar em alguma coisa, alguma causa, empunhar bandeiras, mas
seria estranho e até irresponsável deixar a poesia passar incólume frente a certas
demandas atuais, sejam nacionais ou internacionais. Tenho reserva de poesia,
substrato lírico, assim penso que numa próxima empreitada posso mover o timão
para outro plano. O “inutensílio” (aqui segundo a formulação de Leminski e pelo
uso recorrente em Manoel de Barros, em que o objeto poético se basta em si,
descartando e abrindo mão, muitas vezes, se não de todo, de aspectos éticos,
políticos e sociais) não abandona jamais a minha poesia, mas tem épocas em que
a flama do momento deve ter um acento ainda maior. A utopia coexiste sempre. É
perene. Mas o quadro atual é tenso, horrendo. Falando em utopia, além de
desejar um mundo mais nuançado, harmonioso, justo, solidário, com mais tempo
livre, menos metas meramente dinheiristas, gostaria de ter feito, sobretudo em Central de Despachos, algo que tenha
dado conta do calor do período e também sobreviva para depois disso. Se isso
ocorrer, a validação estética estará consumada. A vida simplesmente não existe
sem a linguagem.
06. O “olhar” voltado para as coisas do mundo contemporâneo (do caos da urbe à babel de imagens e vozes na internet) marca muito, a meu ver, tua poesia. As imagens proliferam e se encadeiam, as palavras querem dar concreção a cenas, quadros, lances, falas, personagens que o poeta flagra à sua frente (seja nas ruas, seja nas redes, seja nas páginas dos livros, ou em outros meios). Em boa medida, você atualiza o flâneur baudelairiano, aquele sujeito errante que caminha em disponibilidade pela cidade observando e registrando em detalhes o que acontece (cidade que é também agora uma malha complexa de pessoas em conexão virtual). Em “A Poesia se Escondendo pelos Cantos” aparece uma figura feminina que poderia remeter àquela do poema “A uma Passante”, de Baudelaire, em outro contexto, evidentemente, marcado pelo “cansaço” ao qual já me referi. No teu poema, “a moça saca não a cena / mas o smart da bolsa / e dá um like”, desatenta ao que acontece ao redor e ao olhar do poeta, que, por sua vez, “olha tenta se embaraça”. Como consequência, “a poesia parece virar a cara / e boceja”.
São vários os poemas em que o olhar captura (de modo cru) o entorno (igualmente cru). Cito, por exemplo, o segmento inicial de “Macumba Overdub”: “A bosta fresca do mendigo / ainda fumega próxima do meio-fio / a companheira dele lava a buceta / na água que corre no leito do mesmo meio-fio / um quase senhor mas jovem endividado e povoado de feridas / joga uma bituca de cigarro / um cachorro cheira uma lata de cerveja levemente amassada / com olhos vermelhos o hotel de alta rotatividade / ainda se mantém aberto / o escapamento de uma betoneira incensa a calçada / dois homens escoram uma palmeira / em frente de um novo empreendimento / travestis destilam veneno sensual de seus exoesqueletos esotéricos de Eros e Exu (...)”. Aqui, o registro surge em chave realista/naturalista, mas muitas vezes pode lembrar a “escrita automática” surrealista, como em “Cauda de Rio”: “agora que tudo parou moinho sem vento hélices dois braços / cruzados temos remos dois braços enfermos e a água na / gaveta de terra chuva batina pérola cristal escorre pelo altar aos / pés da nuvem até o altar dos pés de um caminhão leva uma nuvem / separada em sacas de algodão esse vento frio face de vidro / cortante espadas de raio duelam com garras de corvos céu / caminho da nuvem três caças passam alinhados soltando tiras de / Adidas as velas ossatura de esqueleto guiam a nau o fino veio do / coração de tua vulva o sol não descansa de si o sentido pode / esperar esqueletos de néon sabiá peita orvalho pia e derruba a / grua que cai de soslaio na madrugada definitiva o cheiro agridoce / (...)”. Esse tipo de “encadeamento vertiginoso” também se projeta no âmbito das referências culturais (literatura, cinema, música, publicidade, internet/redes sociais etc.), em muitos e muitos textos. Em “Slide-Caverna” lemos: “Voltarei a Voltaire / tirarei bolor / de Baudelaire / passarei pano / em Lacan / olharei de novo / o eu em Freud / soarei outra vez / o alarme de Mallarmè / (...)”, e por aí segue, elencando nomes cultuados. São autores de ressonância ampla. Mas o poema “maCWmBa” prima pela referência a nomes, no caso, curitibanos, e deve ser meio opaco para quem não detenha certas chaves de leitura: “(...) / (bigode polaco com seus pelos de pincel grafa um haiku) / (Maria Bueno esfinge no Municipal Inácio Diniz) / (Helena com olhos mais azuis que o céu de cu que imita cinza) / (Bueno a cavalo paraguayo marafona Guaratuba e tanka) / (cebola bolacha meia dúzia de vozes encrenca Karam) / macumba falcatrua – trabalho de moça conto de Dalton / num canto do Largo – entre a Romário e o Alemão / (...)”.
Você poderia falar um pouco mais sobre teu processo de escrita?
Baudelaire? É possível esse paralelo,
apesar de não ter sido totalmente intencional, mas como Baudelaire sempre
esteve na minha mira, a “visita” da cidade parece familiar, até porque já havia
passagens e paisagens em Evite, que é
bastante “externo”, o que se interrompe um pouco, com certo ar ermitão, em Hospedaria, e volta de maneira mais
intensa com Central. Referências
artísticas, de fato, se engolfaram a elementos de rede social, por exemplo, o
que ajuda a imprimir, a meu ver, uma fisionomia de urgência (instrumental) e
cinismo (estrutural) ao mesmo tempo. Surrealismo? Pode ocorrer como nuances,
quase na íntegra de poemas, como no destacado “Cauda de Rio”, ou como elemento
construtivo em versos e trechos pontuais em outros casos. A origem dessa
faceta, uma vez que nunca fui muito adepto do surrealismo “puro”, talvez tenha
vindo de forma intrincada por meio do primeiro João Cabral, de Murilo Mendes,
mas antes de Cesar Vallejo, que talvez seja o verdadeiro fundador dessa
escrita, mesmo que não de forma totalmente consciente. Se não pela totalidade,
mas em larga medida, essa profusão quase convulsionada serve como certo
anteparo a um cinismo galopante. Hoje, muito se produz, mas com qualidade
discutível. Há certo espaço para o escoamento do que se produz, mesmo que com
mínima crítica, mas tudo operado com caráter uniforme, monocórdico, quase
sempre padronizado em termos de temas e linguagem. Um senso comum, por mais que
não de forma consciente, parece almejar um controle, uma ânsia de domesticar,
de manter tudo mais ou menos inofensivo. Digamos, uma prática tácita entre
grande parte dos leitores e poetas, e também de alguns editores. Um facilitador
de tudo isso é a própria facilidade do fazer poético em si, não quando em casos
em que há alta fatura final, obviamente, mas me refiro ao fazer da poesia, puro
e simples. O publicar, publicar. Ninguém canta ópera se não estudar. A poesia
oferece esses gumes. O preço e a consequência muitas vezes são altíssimos. A
despeito da meta atual, sempre me interessei por muitas frentes em simultâneo,
com misturas em princípio inconciliáveis, mas penso que desde minha formação
escolar já havia esse terreno mais ou menos arado para poder exercitar tais
composições. Se fizermos um recorte de boa parte do que fez Torquato Neto, para
nos atermos a um nome, vamos nos deparar com colagens e afins. Então, não vejo
nada de tão exótico nisso, e apesar de haver um direcionamento, não há quase
nada de exclusivo, excepcional. Agora, evidente que o resultado pode e deve ser
diverso e eficaz.
08. Os títulos dos poemas chamam bastante a atenção. Em alguns casos, eles são porta importante de entrada para o próprio texto: o poema meio que se ilumina a partir do título. Por vezes, parecem ter vínculos distantes, ou mesmo nenhum vínculo mais evidente. Muitas vezes, você parece provocar o leitor, exigindo que ele preencha a lacuna existente entre título e poema. Um caso claro para mim é “O Mundo Só Acaba Quando Todo Mundo Ler Ulisses”, que, num primeiro lance, não parece ter conexão nenhuma com os versos que vêm a seguir. Poderia comentar um pouco a escolha dos títulos? Mais: poderia comentar o nome do livro em específico? A propósito de “despachos”, há vários poemas que têm a palavra “macumba” no título. E, se “Nossa Senhora das Graças” pode referir-se, num primeiro instante, ao universo religioso cristão, há um conhecido hospital em Curitiba com esse nome. Que “central”, afinal, é essa?
Títulos sempre são uma questão a ser
levada em conta. Têm certo poder de sedução. Podem despertar ou até inibir
interesses. Não gosto de títulos óbvios, mesmo considerando que às vezes não há
saída. O Francisco Alvim tem uns ótimos, em que o nome do poema completa o sentido
do texto, é parte integrante, mas servem para ele, e ainda assim em textos
curtíssimos. A minha experiência não tem propriamente um método. Cada poema
meio que se batiza quase por vontade própria. Há sim esses casos mais
singulares, com certo extremismo, aos quais você se refere. Em Central houve a intenção deliberada de
criar uma tensão, um choque, uma estranheza, propícia ao proposto no corpo dos
poemas do livro. Os “despachos”, “macumbas” foram feitos cumprindo um eixo que
vai se formando e percorre o livro em várias ocorrências, marcando ritmo e
conceito. Central de Despachos Nossa
Senhora das Graças é um (quase) ready-made.
Um despachante próximo de minha última residência em São Paulo trazia em sua
placa o nome Agência de Despachos Nossa
Senhora das Graças. Achei Central
mais sonoro e fluido. O livro começa aí.
09. Ao longo de nossa conversa, você se referiu a alguns autores, a começar por Caetano Veloso, presença já no período formativo. No livro, há uma grande profusão de nomes. Gostaria que você falasse um pouco mais dos autores que são referência para você, tanto aqueles que foram importantes no processo de aprendizagem, quanto aqueles aos quais você retorna regularmente. E, para encerrar, gostaria de saber se você acompanha de perto a cena da poesia brasileira recente e como você situaria teu trabalho dentro dessa mesma cena.
Os autores da fase inicial são os
poetas-compositores da música popular brasileira, a geração marginal, os
concretos, os beatniks, os
cantautores interncionais, como Bob Dylan, Leonard Cohen, Nick Cave, Lou Reed,
entre outros. As referências de ontem e que serão para sempre podem não se
manifestar como influência escancarada, mas estão dentro da própria corrente
sanguínea do poeta: Herberto Helder, Walt Whitman, Nicanor Parra, Roberto
Bolaño, Raul Bopp, Carlos Drummond, Oswald de Andrade, Gerard Manley Hopkins, Dante,
Pessoa, e tantos mais que poderia mencionar. Além, claro, de uma possível
extensa lista nas áreas das artes plásticas e do cinema. Acompanho a poesia
brasileira com certo desinteresse, e diria com preguiça até. Tirando alguns
poetas, a imensa maioria se enquadra no que já me reportei acima. A própria
causa identitária, fundamental em sua essência, mas cheia de oportunismos, de
fácil adesão e resultados estéticos acríticos, acaba como que suplantando em
parte toda uma produção. O mesmo vale para um frouxo artesanato, ou ainda para fórmulas já muito repisadas, o que também
contribuiu muito para essa situação. Tento fazer
algo diverso, com seriedade, honestidade e franqueza, sem conchavos, turmas,
nem troca de favores.
Poemas
de Central de Despachos Nossa Senhora das
Graças
A
POESIA SE ESCONDENDO PELOS CANTOS
Uma
perna média
parte
de uma asa
e
o próprio brilho da água
uma
garota passa rente
a
uma poça d’água
escura
suja inflamada
mas
que reflete e deixa entrever
a
panturrilha depilada
e
um salto alto vermelho
um
avião voa raso e musica o plano
a
moça saca não a cena
mas
o smart da bolsa
e
dá um like
numa
foto de alguém numa ilha
num
dia de sol e festa
o
poeta olha tenta se embaraça
a
poesia parece virar a cara
e
boceja
CONTAGEM
REGRESSIVA
Take
Six
Quinteto
Violado
Quarteto
em Cy
Zimbo
Trio
Duofel
Primal
Scream
BLACKBERRY
NÃO É AMORA PRETA
Obama
foi um genuíno
homem-bomba
não
o abnegado
o
autoiludido
autoindulgente
rapaz
de ego introjetado
em
meio ao rebanho de gado camelo
Obama
é o pragmático
que
chora na hora certa
que
toca o instrumento cardíaco
do
povo carente
é
o impostor sem compostura
o
canastrão sem censura
o
seu BlackBerry
não
tem nada do sumo da amora preta
seu
suco é ralo e rola fácil pela festa líquida
nada
de Globetrotters Ali Freeman King
nada
de Pantera Negra
nada
de Mandela
adotou
o discurso em uso
por
alguns rappers que estupram
a
inteligência do pano social
espocando
espumante no capô
de
maseratis e mustangs
mas
como muitos pobres
querem
deixar de ser taxados de vilões sem o ser
e
se esforçam pra virar bandidos
institucionalizados
pelo poder
via
esporte via arte via passaporte
Obama
fez da arte da guerra
a
guerra como showbiz
e
como mau ator fingiu
encenar
até a pele que o vestia
grande
parte do mundo
blacks & whites
inclusive
compraram
o ingresso
e
veio o Nobel da Paz
o
que prometia poderia ter sido
um
imponente sol negro
virou
um pálido solo em Oslo
O
SEGREDO DA COCA-COLA
Durante
mas principalmente
depois
de as bolhas de gás
estourarem
entre
a
boca e o nariz
vem
à mente uma canela
não
em pau mas a em pó
uma
certa baunilha se intromete
mas
fraca não convence
e
se dispersa
um
chocolate se insinua
mas
não me engano
um
café pede passagem
mas
não alcança
até
a noz da cola não chega na própria nota
o
caramelo lembrando mais o cão
do
que o corante corre
da
outra em pó nem pensar
puro
cloro cloridrato batizado com tranqueira
pra
variar Décio estava certo
o
aroma quase pende à cloaca
mas
afinando um pouco o olfato
fica
claro que no fundo
o
mundo sabe
é
um fato
a
Coca-Cola tem gosto de cu
PODA
O
comerciante de plantas
diz
que as folhas de baixo
podem
e até devem amarelar.
Já
as de cima, quando isso ocorre,
é
sinal de alguma falta: água ou claridade
(ausência
de alguém, algo de clareza).
Devemos,
ainda, evitar excessos:
vaso
não é charco, avisa; sol demais, cega, alerta.
Cuidado,
demasiado apego, ciúme (mau-olhado?).
Não
sei o que houve,
sua
linguagem tuberculosa me suplantou –
rizoma
que ri de mim.
Conforme
indicado, corto as ditas, mas no ímpeto,
erro
uma haste,
acerto
outra, sadia.
Não
havia notado que se tratava de uma forquilha,
embaralho
mãos e tesoura na bifurcação: deslize.
Aproximo
a sensação de uma dica de Virgílio,
chego
num lance de Ronaldo, o drible dentro do drible.
MACUMBA
OVERDUB
A
bosta fresca do mendigo
ainda
fumega próxima do meio-fio
a
companheira dele lava a buceta
na
água que corre no leito do mesmo meio-fio
um
quase senhor mas jovem endividado e povoado de feridas
joga
uma bituca de cigarro
um
cachorro cheira uma lata de cerveja levemente amassada
com
olhos vermelhos o hotel de alta rotatividade
ainda
se mantém aberto
o
escapamento de uma betoneira incensa a calçada
dois
homens escoram uma palmeira
em
frente de um novo empreendimento
travestis
destilam veneno sensual de seus exoesqueletos
esotéricos
de Eros e Exu
pastéis
gordurosos chegam e ensopam guardanapos na estufa
baratas
drenam o riso nervoso dos sapatos que passam
um
rato risca o chão e some na boca de lobo
de
um outro bueiro um urubu volta ao céu
uma
pomba gira
o
santo baixa
um
altar se oferta
um
ciclista muito perfumado passa veloz
reclama
de alguém que atrapalha a ciclofaixa
lembro
que não tenho tatuagens
MARINHA
tua
tanga quase sangra minha vista
deixa
ver a cor e a polpa da bunda
duas
tetas como setas dão a pista
as
omoplatas são anzol e isca
as
clavículas pérgolas de uva
volto
à tanga o cofrinho pisca
vira
desvira na areia na canga
assa
na tarde o verso de bruços
pinta
na face a frente do buço
minha
fissura na pintura da anca
sorri
com fúria beleza dentuça
harmoniza
e gruda a estria
e
a celulite com mão e astuta
luva
a canção letra e melodia
O
MUNDO SÓ ACABA QUANDO TODO MUNDO LER O ULISSES
William
Bonner
causa
alvoroço
nas
redes ao voltar
de
barba das férias
pensei
em começar
um
poema assim
ou
usar isso como título
pra
outra coisa
deixar
anotado
pra
outra ocasião ainda
mas
bem que Bonner
não
precisava voltar das férias
bem
que não precisava da barba
bem
que as redes
bem
que
esqueci
de anotar
que
não aguento
aberturas
de jogos
AS MANCHAS NO MÓVEL SUMIRAM (OU AS ESQUECI)
é
mesmo estranha a vida
agora
mesmo o vento uiva
pra
ninguém
algumas
folhas rolam pelo chão
mas
não sabem o que dizer
alguns
dos piores amigos
foram
os que mais me ajudaram
os
que pareciam melhores
os
bons de coração
quase
nada fizeram
a
vida é assim carente
nos
toma a frente a toda hora
fazendo
charme de difícil
o
que fica acaba
que
é o que deve ser feito
alguns
dos melhores amigos pularam
com
o carro em movimento
outros
que nem pareciam tão ruins
acenavam
com o polegar direito
à
beira do acostamento
eu
não sei escrever
eu
não sei esquecer
Amarildo Anzolin e
Marcelo Sandmann – fev 2022
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