Foto: Arquivo da Família |
Livro com poemas inéditos da escritora
Assionara Souza (1969-2018) acaba de ser publicado pela Editora
Telaranha: Instruções para Morder a Palavra Pássaro. O lançamento
teve lugar no Wonka Bar, em Curitiba, no dia 05 de abril deste ano de 2022,
acompanhado de leitura de textos. Trata-se da primeira publicação desta nova
casa editorial curitibana, idealizada e dirigida por Bárbara Tanaka e Guilherme
Conde Moura Pereira.
O manuscrito original havia sido
confiado à amiga e poeta Silvana Guimarães, editora de Germina: Revista
de Literatura e Arte. A publicação de material até então inédito vem
ampliar o legado da escritora no âmbito da poesia. Assionara Souza publicou
quatro títulos de contos e lançou apenas um único volume dentro do gênero, Alquimista na Chuva, em 2017, o último trabalho a vir à luz
ainda em vida. Sobre este livro, redigi apreciação crítica, que pode ser lida
aqui neste NERVO LÍRICO:
https://nervolirico.blogspot.com/2022/03/relendo-alquimista-na-chuva-de.html
Silvana Guimarães, junto com a editora Mariza Lourenço, organizou e publicou recentemente site sobre a escritora, com informações sobre vida e obra, reprodução de contos e poemas, indicação de links para outras publicações, além de apresentação de material iconográfico:
https://assionarasouza.com.br/
Para marcar o lançamento do novo trabalho, o jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, apresentou em sua edição de março de 2022 um dossiê sobre a escritora. Ela está na capa da publicação, na reportagem especial (“Nara não é um cachimbo”) e tem poemas do livro póstumo antologiados na revista:
https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Noticia/ESPECIAL-Nara-nao-e-um-cachimbo
Reproduzo abaixo alguns textos do livro.
7 POEMAS DE INSTRUÇÕES PARA MORDER A PALAVRA PÁSSARO
Para todos os efeitos, estamos felizes
Não vamos considerar
O tempo que perdemos no trânsito ou ao
telefone
Tentando reconduzir a vida
Aos trilhos onde o carrinho desliza sem
trancos ou sustos
É preciso confiar na eficácia da ciência
Quando os cientistas saem tarde
Da noite dos centros de pesquisa
Uma barata os espia roendo os resíduos
das
Drogas que caem das mesas de trabalho
E o psiquiatra jamais adormeceria sem a
Pílula milagrosa que despluga
pensamentos
O que importa de fato é o investimento e
a publicidade
De que um mundo admirável está prestes a
surgir
Para todos os efeitos, as novas marcas
de cafés
E cervejas têm dado um novo alento
Ao homem médio e sem tempo para se
dedicar à
Eficiência milagrosa dos clitóris do
mundo
É suficiente o uso de poucas palavras em
situações burocráticas
Deixando o excesso para a solidão das
páginas virtuais
E o amor, o amor, o amor...
Por favor, aguarde na linha e logo mais
o atenderemos
Para todos os efeitos, o jazz e a música clássica
Escorrerão pelos ouvidos
Até que a moça do telemarketing com sua voz
Provinda de insuspeitos grotões
Transgrida a maciez semântica de
humanidade própria da frase:
“Bom dia, em que posso ajudar?”
*
para
Fábio Rodrigo Cardoso
E então seguimos até o café
Por essas calçadas de tijolos soltos
Pisando o pé em falso enquanto
Você, depois de uma tosse longa,
Fala-me do romance que está lendo
E que se não fosse isso, as leituras
Se não fosse isso, talvez
Já tivesse desistido
Duas crianças brincam por ali
Um riso solto e o corpo flexível
Nós seguimos rijos e taciturnos
Sisudez forjada pelo tanto
De literatura consumida
Não produzimos o suficiente
Para o registro da existência
Nenhum filho ou filha
Sobre quem despejar angústias
E as intenções vencidas
Um dia havia aqui um cinema
Ilusão movente dos espaços
Hoje é uma loja de calçados
Vemos a moça se abaixar
Para calçar o pé do homem
Que profissão, meu Deus!
Nem mesmo os monges...
Ali vai um vencedor
Acena-nos de longe,
Inquieto e apressado
Talvez o medo de que
Nossa lenta derrota o atinja
Essa atração por abismos
Sempre nos mantivemos
Fiéis à coisa nenhuma
O frenético nada
Que nos entope as narinas
Seu traje é bom, mas
Mesmo o novo parece gasto
Finalmente entramos no café
Os ônibus passam levando
E trazendo pessoas que talvez
Nunca tenham ouvido falar em
Carlos Drummond de Andrade
E mesmo assim, você e eu,
Insistimos nessa crença
Essa inútil crença na poesia
*
A nova geração
Ora, a nova geração é exatamente
Isso que você está vendo
Carradas de ansiolíticos e fones de
ouvido
Descarregando músicas melancólicas
A mão charmosa de onde pende
Um cigarro (filtro vermelho)
Depois, aquela festa na casa do novo
melhor amigo
Faz tempo que a gente não se vê, hein?
Tem pó?!
O papo em torno da nova temporada
Daquela série imperdível
Semana passada o casal mais sensacional
separou-se
E agora ela exibiu na página
Um depoimento de rasgar o coração
É bom mesmo que ele suma por um tempo
E volte com um trabalho original
A nova geração arrasta a ressaca
Dentro de um Uber
Ou mesmo naquela linha que sai do centro
E percorre toda a parte parda da cidade
Descendo no terminal
Entrando numa casa onde vive
A mãe e talvez um pai tão iguais
Tranca-se num quarto bagunçado, acende
um baseado
E lê aquele poema em que o Bukowski
escracha
– Foda-se a nova geração!
*
Tarot
Vou confessar, querida
Tenho isso de gostar dos loucos
Observo de longe o jeito que eles comem
com os olhos
Com você foi assim
Esse esmalte vermelho sempre em dia
Esse passado colado no álbum com
cantoneiras e papel vegetal
Quero a receita completa
Desde o suspense antes do desfecho da
trama
O disparo, teu olho assustado pra câmera
Por detrás da palavra pêssego corre um
rio espesso
Mordo a palavra pêssego
E as comportas desabam – uma cidade
inteira vem abaixo
Corremos, corremos para bem longe do set de filmagens
Vida real é um cão dormindo no silêncio
da tarde de um domingo
*
Quincas
Existe um gato
Respira, come, dorme
Ultimamente tem largado
Seus dejetos fora da caixinha
Quando quer um snack de atum
[espécie de café expresso para gatos]
Ergue a cabeça em direção à
Quinta prateleira da estante
E mia feito um pedinte até que eu o
atenda
Existe um gato
Esquece o potinho d’água, salta
E mata a sede na torneira da pia
Corre pela casa driblando
Brinquedos ou bolinhas de papel
Ramos de plantas, peninhas soltas
De repente para, se espreguiça
E arreganha uma descabida bocarra
Vem deitar-se comigo em silêncio
Olha, interroga, pressente
Aguarda que o indecifrável retorne
Ao incognoscível de onde veio
Nesse mínimo olhar lançado ao meu
Suspensos nós dois
Na penumbra quente do quarto
O mistério nos rodeia e nos iguala
*
Os delicados se espantam com a ousadia
dos jovens
Que cobrem o rosto e vão para as ruas em
protesto
Os delicados esbravejam
Há um compromisso viril de preservar o
mundo
Em sua crosta lanhada de cinismo
Um dos filhos apareceu de unhas pintadas
É preciso um levante contra a
imoralidade
Os homens estão se degenerando
Alguns vestem saias e dançam
Um homem dançando de saias é o fim dos
tempos
É preciso assassinar todos antes que
seja tarde
Um filho assim está perdido pro mundo
Mas ainda se pode salvar o mundo de
filhos assim
Onde estavam as mulheres que não
impediram isso?
Os delicados dormem com a
Arma debaixo do travesseiro
O latido do cão de madrugada adverte
contra
O ladrão, o inimigo estrangeiro
Os delicados têm certeza de tudo e
A polícia está com eles
A Igreja está com eles
A política, repleta deles
Os delicados passeiam páginas
Pornográficas na madrugada
A filhinha do vizinho é tão linda
Já aprendeu a dizer “papai”
Tem lábios puros que benzem tudo que
tocam
Os delicados desejam essa unção acima de
tudo
E chegarão cedo às repartições
E formarão pelotões contra a imoralidade
E banirão todos que ousarem usar
O corpo como se fossem deuses
Os delicados estupram, insultam,
constrangem
E pagam as contas em dia
*
Escolas
O amor, essa obra de arte
Desce pela garganta como uma salamandra
pequena
A pontinha do rabo verde pra fora
Que foi isso, meu bem?
Isso o quê?
E lá vai ela deslizando goela abaixo
Enrola-se no coração com suas patas
grudentas
Tenho te achado tão diferente esses
dias...
O que você está sentindo exatamente?
Saudades do tipo doidas, doutor
Mesmo quando estou junto, ao lado, garradim, saudades
Talvez se eu pudesse engolir ou injetar
ou cheirar ou fumar
Pra caber todim dendimim esse amorzim
Arranca a folha do bloco com impaciência
Carimba o CRM e assina
Olha: isso é romantismo
Você vai tomar distância todos os dias
Evite ouvir a voz, sentir o cheiro, lamber,
ver,
Beijar, abraçar, também não aconselho...
Doutor, não seja tão realista!
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