João Luís Barreto Guimarães nasceu na cidade do Porto, a 3 de junho de 1969. É poeta e tradutor, com diversos títulos publicados em Portugal e no estrangeiro. Estreou em 1989, com o livro de poemas Há Violinos na Tribo, a que se seguiram Rua Trinta e Um de Fevereiro (1991), Este Lado para Cima (1994), Lugares Comuns (2000), 3 (Poesia 1987-1994) (2001), Rés-do-Chão (2003), Luz Última (2006), A Parte pelo Todo (2009), Poesia Reunida (2011), Você Está Aqui (2013), Mediterrâneo (2016), Nómada (2018), O Tempo Avança por Sílabas (Poemas Escolhidos) (2019) e Movimento (2020). No Brasil, publicou-se recentemente a antologia O Tempo Avança por Sílabas, pela editora 7Letras do Rio de Janeiro, em 2021, com 150 poemas escolhidos pelo autor, 50 a mais do que na edição original portuguesa de 2019.
Sobre sua poesia, redigi o artigo “'Escrevo porque acontece': alguns aspectos da poética de João Luís Barreto Guimarães”, publicado na revista Convergência Lusíada, vol. 26, nº 33, 2015, dentro do dossiê “Poesia em Tempo de Prosa”, que reúne trabalhos apresentados no III Colóquio do Centro de Estudos Portugueses da Universidade Federal do Paraná:
https://convergencialusiada.com.br/rcl/article/view/53/51
Textos do autor bem como resenhas sobre sua produção literária encontram-se reunidos no blog “João Luís Barreto Guimarães: livros, poemas, crítica”:
http://joaoluisbarretoguimaraes.blogspot.com/
Abaixo, selecionei 10 poemas que julgo representativos
da trajetória do poeta e que podem ser encontrados na antologia publicada no
Brasil.
põe um disco a correr. a chuva não
demora
mais do que esvaziar das nuvens se te
confessasse as coisas que já atirei ao
mar
(o revólver do crime palavras numa garrafa)
não darei nome ao poema seria como quem
coloca legendas aos dias e eu: sou como
água (tomando a forma dos lugares que
molha)
vou repetir (para quem só agora ligou
este poema:) no cesto de frutos da mãe
as estações do ano sucedem-se e o disco
era um disco tão antigo tão antigo que
a certa alturantigo tão antigo que a
certa alturantigo tão antigo que a certa
alturantigo tão antigo qu
*
A meias
Bebo o meu café enquanto bebes
do meu café. Intriga-me que faças isso.
Se te posso pedir um
(se podes tomar um igual)
porque hás-de querer do meu?
Que
não. Que não queres. Escuso
de pedir
que não queres. Então
começo um cigarro e tu fumas
do meu cigarro dizes
“tenho quase a certeza de
não acabar um sozinha” por isso
fumas do meu.
Dá-te gozo esse roubar de
leves goles furtivos
dá gozo participar
do prazer que eu possa ter
contigo
(e entre nós)
dá-se agora tudo
a meias.
*
Introdução ao niilismo
Na noite passada enviei uma SMS a meu
pai
mas ele não respondeu. Já kontava kom isso. O
corpo dele baixou faz
outro mês amanhã
nenhum de nós destinou o Sony Ericsson
dele
ao rectângulo do caixão. Era
de um gênero antigo (outrossim
muito estimado)
algumas horas ligado mesmo sem
conversação
começava a avisar: bateria esgotada.
Duvido até que houvesse boa rede
lá no fundo.
Quando descia aos arrumos era o que
acontecia.
Sucede que agora se quero falar com ele
tenho de ligar a Deus. E eu não falo com
Ele.
Não quero ter de calar (olhando-O
olhos nos Olhos:)
“uma morte nunca é justa”
“foi demasiado cedo” “já agora
passe aí a meu pai”.
Já tenho ligado para Deus
parece dar sempre ocupado.
*
Meditação em Váci Utca
ao Rui Lage
A tarde: passei-a a assistir à guerra
pela televisão. Nenhum dos nossos está
em falta
enquanto nesses lugares se contam
desaparecidos. Ninguém
da nossa geração esteve na revolução.
Outros
(antes de nós)
fizeram as nossas guerras (quando
chegámos aos dias já a guerra havia sido
chegámos para lutar tinha
o ditador caído). Para nós só sobejou
outra
sorte de batalhas (levantar cada manhã o
peso imenso das pálpebras)
correr por um lugar na trincheira
do balcão.
A tarde inteira assisti à guerra
pela televisão (deste lado do ecrã não
se
passa frio
ou fome). Sirvo-me um copo de vinho num
gesto despreocupado enquanto assisto em
directo
ao estrear de outra batalha. É terrível
quando cai a cor do vinho tinto
no branco
puro da toalha.
*
Estátuas a que faltam bocados
Na
ala de arte romana
já-não-sei-de-que-museu
exibem-se torsos arcaicos aos quais
faltam bocados. O tempo foi meticuloso a
escolher o que levou (as
primeiras partes a cair variam conforme
o género:
há Três Graças sem cabeças
um deus Febo sem pénis) deve haver
algum lugar onde abunde a anatomia
que por aqui segue em falta –
belas cabeças em mármore
(mau grado a anemia)
falos avulsos sem torso (tristes e
sem serventia)
agradeçamos aos deuses o dom da
imaginação
que permite figurar tudo quanto
desfigura.
Não é um exercício difícil.
Não foi castigo divino.
Não quebraram com o uso.
*
Problema de Física
a José Antonio Mesa Toré
Se o TGV
Málaga-Córdoba segue a 300 por hora
(as colinas derramando cascatas
de casas mudéjares) e eu
sigo para o vagão-bar a 2 km por hora
(sobre a terra andaluza oliveiras
imortais) com
que pressa o
coração corre a poder contemplar os
pátios floridos das fiestas
(as esguias ruelas árabes) os
arcos sépia da Catedral?
a) 150 km por hora
b) 600 km por hora
c) 302 km por hora
*
Canção mediterrânica
Já
tudo vimos tudo provámos tudo escutámos
(odes à vitória por Píndaro
vinho e azeite extraordinários) nas
encostas onde Zéfiro traz às velas desde
oeste
um cheiro húmido e
gelado. Eis a acrópole de Lindos (que
os deuses abandonaram) um
templo que Fídias amou e onde ao tempo
cabe ainda o trabalho de
um grande escultor. Agora é a vez de
deixar
que seja o mar a tocar-nos (o
mar interior primitivo
o caldo primacial)
ontem rasgado por remos da Fenícia até
Cartago. Este é o mar de Ulisses (o
que Xerxes vergastou) um mar que
não é passado
(porque o passado é presente) onde o
tempo passa lento porque avança parado –
como gatos nas ruínas (matando
tempo
com tempo) golpeando com a cauda
inimigos
imaginários.
*
Êxtase de Santa Teresa
Eu peço
imensa desculpa cardeal Federico Cornaro
mas
cuido que Gian Lorenzo Bernini
o enganou. Se não o mestre que explique
(como lhe aprouver melhor) a
face de gozo da Santa (o
corpo lançado para trás o
hallux
semiflectido os olhos semicerrados) já nem
falo
desse anjo trespassando a seta em fogo
com o riso atrevido de um cupido
consolado –
se é isto o amor divino eu quero ser
querubim
a menos que (Excelência:) Vossa
Excelência confesse que ordenou a obra
assim
(o pecado mascarado pelos excessos do
barroco
algo difícil de ver numa igreja
calvinista)
nesse caso (Excelência:) não
sei qual julgar maior se o
lento gozo da Santa (largada a tal
entrega) se a
nossa inveja pelo tempo que ela já leva
daquilo –
os lábios entreabertos de metafísico
amor
preenchendo (Excelência:) o
espaço interior do vazio
prolongando (Excelência:) o grito
da
doce
dor.
*
A hipótese do cinzento
Num país a preto e branco
recomendaram-me o cinzento. Um recurso
extraordinário. Com a hipótese do
cinzento poderia
ensaiar
soluções inusitadas –
experimentar o morno (que não é frio nem
quente)
explorar o lusco-fusco (que
não é noite nem dia) praticar a omissão
(que não é mentira
nem verdade). Preto e branco misturados
permitiam
finalmente
viver em conformidade
desocupar os extremos (tão alheios à
virtude)
liquefazer-me na turba
no centro na
média
dourada. Com a paleta dos cinzentos
poderia
aprimorar a arte da sobrevivência que
(como os mansos bem sabem) é
não estar vivo
nem morto.
*
A título de exemplo
Nada contra os que partiram eu
fui alguém que ficou. Apontaram-me o
dedo
(dei o meu corpo à mira)
vieram pelo meu posto
esvaziei-lhes o lugar. Nada contra
quem calou
eu fui um dos que falaram –
ataram-me os pés com corda
(com as pontas fiz um laço)
destinaram-me a um canto
redecorei-o de flores. Nada contra
os que quebraram
fui alguém que resistiu –
quando me julgarem morto
vou-lhes tomar o país.